sexta-feira, 29 de junho de 2012

Transcrição da segunda parte do debate com Vincent Carelli a propósito da exibição de “Corumbiara” no CineCoque de 4 de maio de 2012


A primeira parte do debate aqui.

Pergunta: Se duas tribos são contatadas por dois diferentes grupos de cinema, a gente pode dizer que a diferença não está tanto entre as tribos mas naquilo que foi semeado nelas?

Vincent Carelli: Bom, sem dúvida. É uma marca, é um trabalho colaborativo antes de mais nada. Então, os frutos desse trabalho tem a ver com ambas as partes, tem um input aí, input importante de ambas as partes, índios e não índios. Cada input diferente dá uma química diferenciada. A maneira de conduzir o processo pode levar.

Pergunta: Porque eles não tinham o conceito minimamente teórico do que era filmar, então eles não podiam ter um estilo próprio antes de conhecer a câmera…

VC: Não, claro. E nada é cerebral, sabe?! É uma coisa mais intuitiva.

Pergunta: Esses vídeos feitos pras escolas tão disponíveis em algum lugar?

VC: Olha, tem uma coleção chamada “Cineastas indígenas” que tá na Livraria Cultura. Tem 7 números, por povo. Esse (mostra um DVD) é o último que saiu sobre os guaranis do Rio Grande do Sul. É uma coleção que cada DVD vem com quatro filmes. Esse, no caso, vem com três. São dois filmes de autoria indígena, um filme histórico sobre o povo e um making off, meio que pra entender qual foi o processo de produção e qual é o interesse deles em filmar e produzir filmes. Como é que acontece o processo em cada povo. E vem também um folheto, uns textos. Essa é a coleção que a gente tá incrementando com o melhor da produção desses últimos 12 anos de formação.

Pergunta: Nesse processo das oficinas, com cada etnia é diferente. As oficinas tem uma certa unidade de pensamento, desse cinema direto, intuitivo, ou com cada etnia você tem que reagir de uma determinada maneira?

VC: É, acho que o segredo é você tá aberto e antenado. Qual é o desejo, qual é o tema, o que tá acontecendo, enfim, e por onde as coisas vão. Tem índios que gostam de fazer ficção. Tem uns que são mais políticos. Aí é que tá a grande magia dessa alquimia, é perceber o outro e entender o desejo e o potencial. Então, é por isso que você entra na oficina. Você não tem a obrigação de produzir um filme porque isso já gera um estresse, tanto em quem tá dando a oficina quanto nos alunos. Foda-se, se não tiver filme, não tem filme, não tem problema. Isso aí já é fundamental. Quem entra numa oficina de uma semana e acha que vai produzir um curta, editar e finalizar, não vai ser assim. Um filme pode levar 20 anos pra fazer ou pode levar meia hora, sei lá, mas não pode ser as coisas pré-arrumadas. Então tudo depende disso. De repente você começa um filme e vai desenvolvendo numa próxima oficina. Tem filmes que levaram duas, três oficinas pra ficarem prontos. Tem uns que saíram do forno ali na hora. O que não pode ser é – aí é que tá o teu ponto de vista – é ser condescendente. “O que fizer tá bom”, “ah é índio, pô”, ou “é da periferia”, sabe?! E tudo bem, se faz registro, não precisa fazer um filme. Fazer um filme tem que ser uma coisa capaz de sustentar uma platéia, emocionar um público.

Pergunta: A gente observou que com a presença da câmera, eles podem mudar o comportamento. No início, um grupo voltou a fazer um ritual que não fazia há décadas, meio que aproveitando a câmera pra poder registrar. E também teve o caso do índio do buraco, que ficou muito agressivo e você imagina que por conta dessa câmera. Você se preocupou com essa naturalização quando foi filmar? Porque a imagem que a gente tem deles é a imagem que vai se perpetuar, como naquele outro caso que o grupo do fazendeiro tirou foto com índios com roupas de branco e isso ficou perpetuado. Enfim, você se preocupou em tornar o comportamento deles natural, pra não causar um falso estereótipo?

VC: Olha, a presença de uma câmera muda, é a coisa mais universal que tem. Não é só índio que muda de comportamento quando tem uma câmera. Principalmente se tiver consciência do que é que aquela câmera tá fazendo. E ver as imagens e tal, é uma coisa que o vídeo possibilitou. E o cinema, se puder chegar num lugar desse, passa o ano filmando sem que ninguém saiba o que você tá fazendo, né. Tem um filme clássico do cinema que é “Crônica de um verão”, do Edgar Morin e do Jean Rouch, que é sobre isso: como as pessoas mudam, como uma câmera numa cena muda o comportamento das pessoas. É a coisa mais universal que tem. E eu acho que a gente joga exatamente com isso, é isso que é estimulante criativamente. A partir do momento em que o cineasta chega pra pessoa e estabelece um contrato, “pô, eu queria fazer um filme com você, posso filmar e tal?”; a partir do momento em que se estabelece esse trato, a pessoa que vai ser filmada começa a construir um personagem e – o que é fantástico, principalmente nesses filmes de personagens no cotidiano – o input dessas pessoas ao criarem seus personagens é incrível. Quer dizer, eu costumo dizer que eles são tão autores como os cinegrafistas que tão filmando eles. Porque ele propõe coisas, atividades, cria diálogos, desenvolve conversas. É isso justamente que é a magia do cinema, vamos dizer. A partir do momento que você liga a câmera, começa a acontecer coisas que não aconteceria se essa câmera não tivesse ali. E isso que você trabalha, né. É isso que gera tudo. O imprevisto acidental, o imaginado, o criado. Você pode até, em outros filmes, criar situações: “Se eu juntar fulaninho com sicraninho em tais circunstâncias, eu vou ter um embate que pode ser interessante pra revelar isso e aquilo”. Então eu acho que o cinema nasce a partir desse momento em que tem uma câmera que interfere numa cena e muda o comportamento das pessoas. E esse é o teu material pra filmar.

Pergunta: Em “Corumbiara” eles [os índios] tinham noção do fato de estarem sendo filmados, vocês mostravam a filmagem, o material a eles?

VC: Em "Corumbiara” a gente mostrava. Inclusive, durante todo o processo, quando descobre un cara que fala a língua, vai revisando o material com eles e traduzindo. Um caso decisivo, muito particular, muito estranho, muito atípico – no sentido de que eles foram contatados em 95, já se passaram mais de quinze anos – são pessoas tão traumatizadas que é como se o contato não tivesse acontecido, porque eles não aprenderam a falar português, eles não se interessaram. O índio é um ser de uma curiosidade devoradora desse mundo de fora, mas eles continuaram vivendo ali numa bolha, que é uma coisa muito atípica. Mas é que eles estão numa situação tão fragilizada – na verdade eles estão condenados a morte, né, porque eles não podem se reproduzir, são todos parentes, é como se tivessem esperando a morte -, até as imagens, a gente mostrou outros povos pra eles mas eles nunca se interessaram muito e meio que se comportam em relação a câmera quase como se a câmera não existisse. Agora que aconteceu uma epidemia, foram pra o hospital, tiraram radiografia, né... e agora eles entenderem, associaram a radiografia à fotografia, fosse pra curar. Então eles tavam com essa nova loucura, você chegava com a máquina fotográfica e eles diziam 'aqui, aqui ó, aqui tá doendo'. Parecia que era um objeto xamanístico pra passar a dor, sei lá.

Pergunta: Existe alguma relação do uso dos alucinógenos pelos índios com a produção audiovisual deles?

VC: A ayahuasca é chamada no Acre de cinema de caboclo. Mas aí você não precisa de câmera, você fecha as pálpebras...

Pergunta: A ayahuasca é uma coisa tão potente que uma pessoa com a câmera na mão pode alcançar certos níveis de percepção estética muito diferentes.

VC: É, e de repente quando ele assistir, quando ele tiver bom, não vai reconhecer nada do que ele filmou... Os índios hunikui, os chamados kaxinawá, fizeram um filme sobre os cantos do cipó (HuniMeka, os Cantos do Cipó), sobre a ayahuasca, mas essa transposição da alucinação pro cinema ainda não aconteceu.

Pergunta: Você sabe de algum projeto parecido com o "Vídeo nas Aldeias" nos outros países?

VC: No mundo inteiro. E aliás foi encontrando outras pessoas trabalhando em festivais internacionais... (atende o telefone). Onde eu parei? Sim, tem no mundo inteiro. Em 80 começava... na verdade em 86 começavam simultaneamente três projetos que não se conheciam: dois deles no México e na Bolívia foram de inspiração do Ateliers Varan, e eu fui conhecer o Ateliers Varan uma década depois. Mas em 86 começou um projeto similar no Brasil, na Bolívia e no México. Hoje tem em muitos países da América Latina, tem na Índia, na África, nas Américas, no Alasca, enfim, na Índia nativa...

Pergunta: Existem ainda esses projetos?

VC: Sim, tem muitos. Quer dizer, no primeiro mundo, nas minorias do primeiro mundo, que são os países mórbidos, a Finlândia, a Noruega, o sangue, é uma população... Nos Estados Unidos, no Alasca. Os aborígenes da Austrália têm uma rede de televisão. Tem inclusive cota. Nas televisões comerciais, tem que ter uma cota de aborígenes trabalhando, de faxineiro a diretor. Nas minorias de primeiro mundo, quer dizer, as novas gerações têm tido acesso a escolas, faculdades de cinema, então se produz coisas que são distribuídas internacionalmente. Inclusive os Maori da Nova Zelândia, os Inuit ganharam o Cannes há uns anos atrás. E tem o terceiro mundo... hoje não sei, a gente já é primeiro?! Mas tem projetos mais localizados, mais populares, né. Agora essa coisa de acesso a escola de cinema também é uma discussão nos cineastas aborígenes da Austrália, 'porra, agora que a gente tá certo, a gente tá no modelo Hollywood?'. Qual é a consistência da nossa especificidade de linguagem? Há toda uma discussão, uma auto-crítica, um debate rolando entre eles. Em que medida a escola de cinema tá formatando cineastas aborígenes? Que tão replicando um modelo de cinema que se aprende na universidade.

Pergunta: As imagens do [programa] “Fantástico” que você fez teve uma reação agressiva por parte dos fazendeiros. Como você se sente em relação a isso? Culpado? Porque os índios acabaram prejudicados, você tentou ajudar, mas a reação...

VC: É o embate, né?! Na época, advogados, deputados fizeram... foram pra TV globo, foram pro [jornal] Estadão, pressionaram o ministério. Era impossível... Não, não me sinto culpado não. É uma luta, às vezes você perde e às vezes você ganha. Mas eu não sabia que tinha esse índio lá, que o cara ia ver o fantástico e ia lá atirar no cara...

Pergunta: Não foi sua intenção, é uma consequência indireta de uma ação sua que tinha um objetivo completamente diferente.

VC: Mas, por outro lado, se foi demarcado, se a Justiça Federal isolou as áreas, se obrigou o governo a demarcar as áreas, foi graças às imagens. Então foi pra o bem e foi pra o mal. Essas imagens foram fundamentais pra sobrevivência dessas outras pessoas...

Pergunta: Nesse processo todo de “Corumbiara”, você teve medo?

VC: Se eu tive medo? Eu tive quando eu fiz aquele depoimento de câmera escondida da mulher. Ali eu tive bastante medo. Porque o cara, o pistoleiro, ia toda hora no hotel, ameaçava a mulher e dizia 'você falou, você não falou'. Eu ia de noite pra central telefônica, os caras começaram a falar, 'ó, não anda sozinho de noite'. Começou a se criar um clima assim, eu já tava jurado. Esse foi o momento, o ápice: na hora que os fazendeiros sentiram que eu tinha eles e que eu achava e eles achavam que eu tinha eles na minha mão.

Pergunta: E dos índios?

VC: Não, dos índios eu nunca tenho medo. De polícia eu tenho medo, de fazendeiro eu tenho medo, madeireiro também, mas índio não.

Pergunta: O que foi que você aprendeu com eles, até que ponto você se deixou ser tomado por essa experiência com os índios?

VC: Olha, eu acho que a experiência do choque cultural, que é exatamente o que eu vivi, é uma experiência fundamental pra qualquer cidadão do mundo hoje em dia. Nesse mundo que vai ser implodido por quê? Por guerras de religião? Fora outras catástrofes, ambiental, sei lá, o apocalipse anunciado de uma civilização. Se todas as civilizações passadas afundaram em algum momento, por que vocês acham que a nossa não vai colapsar? É claro que, se não cair a ficha, vai colapsar mesmo. Então essa experiência do choque cultural é fundamental pra descoberta do outro, né, e descoberta da riqueza, da profundidade histórica da humanidade, enfim, é uma experiência pra você [se] abrir. O drama é querer achar que o teu segmento social, o teu país, é dono de alguma verdade. Essa é a coisa mais fundamental em todo mundo: se diz 'viajar abre os espíritos'. Até você sai daqui e vai a primeira vez pra Europa, você descobre um novo olhar sobre o teu país. Então esse é que é o processo fundamental.

Pergunta: Você chegou a participar das práticas espirituais dos índios?

VC: Sim, sim, mas eu sou ateu até a raiz do cabelo. Mas eu admiro muito religião como uma criação do espírito humano e de um sentido de um universo cultural. Me interessa nesse sentido, embora eu seja ateu. E essa dimensão da espiritualidade, de sentir, entender e ter consciência de que tua percepção vai até um certo ponto. E exercitar um mundo de enigmas é a coisa da religião, né. Eu já fui curado no xamanismo, acredito que tenha uma eficácia em todo o processo. Os índios sofrem de muitas doenças também, psíquicas inclusive. Então o tratamento xamanístico é extremante eficaz nesse tipo de síndrome, né. Mas não aderi nem ao daimismo nem... adoro tomar um cipó [ayahuasca], mas não vou vestir farda...

Pergunta: Uma vez li um texto falando sobre os povos antigos da América Central e o teórico tava justamente relacionando a ideia que a gente tem de imagem à filosofia desses povos, dizendo que talvez se a gente concebesse a imagem fora da representação, daquilo da imagem ser alguma verdade, fiel a realidade, talvez a gente se aproximasse de algo mais interessante. Então queria saber se existe essa tendência nas imagens que os índios produzem de sair dessa coisa 'vamo mostrar uma verdade aqui'? Se eles introduzem aspectos da simbologia deles, se tem esse caráter de ficção.

VC: Sem dúvida, a mitologia é totalmente transformacionista. No princípio, gente e bicho era tudo igual, falava, entendia. E tinha negócio da perspectiva: 'Quando eu vejo ele, eu vejo um animal, mas eles entre eles são gente'. Então esse universo mitológico deles demanda um estúdio de efeitos especiais no nível do de [George] Lucas, que é uma coisa muito louca. E eles adorariam fazer mais. A gente nunca enveredou por aí. Um pouco a saída seria a animação pra dar vazão ao nível de delírio transformacionista das lendas e da mitologia. Acho que a gente não alcançou esse... espero que nas próximas gerações de cineastas indígenas tenha algum que desenvolva essa veia aí.

Pergunta: Então vocês já fizeram animações também?

VC: Já fizemos pouca, muito pouca coisa. E fizemos um pouco de ficção também. Tens uns que só se interessam por ficção. Como é que é o negócio? Você vem com uma proposta e, de repente, você bate num lugar que não é isso: 'Ah, então cada um escolhe seu personagem, seu cotidiano e tal'. De repente me aparece um aluno que filmou uma lendazinha, um menino que vai atrás de um fantasma  – ele filmou editado! – e mostra o negócio, 'porra, cara, que maravilha, vamo fazer mais!' e não sei quê. Aí o cara vira 'é, pois é, mas eu não tenho tempo, tenho que filmar o cotidiano, personagens, não sei quê'. Aí cai tua ficha, você fala 'porra, o cara tem que fazer ficção! Vai lá, que maravilha!'. Você tem que 'errei, desculpe, vai lá, faz aí'. Esse é o negócio, o desafio total, quer dizer, cada momento o que é que cola, como rola, enfim. Não dá pra entrar em fórmula porque aí acabou tudo. Por exemplo, o vídeo-carta (MARANGMOTXÍNGMOMÏRANG Das crianças Ikpeng para o mundo), que faz um puta sucesso em todo lugar, vários outros grupos tentaram fazer e ficou um negócio super chato, não saiu nem um filme  – graças a deus. E muitas escolas fizeram resposta ao vídeo-carta, mas não tem uma que eu... Então reproduzir fórmula... porque aquilo nasceu de um momento deles, inventaram aquilo e fizeram. Outros grupos quiseram copiar mas não rolou.

Pergunta: Você já fez alguma coisa com os xukurus?

VC: Não, não fiz. A gente trabalhou um pouco com os truká, né. Porque a gente procurou o Centro Luiz Freire e eles indicaram os truká pra gente e tal. Os xukurus, como é mais perto daqui, tem um monte de gente trabalhando. Mas eu não fui nas oficinas [dos truká]. O primeiro trabalho que saiu é um filme que eu até gosto, mas a comunidade rechaçou. Comunidade muito grande, são mais de 5 mil pessoas, tem milhares de cabeças, tem uma tendência, uma liderança, uma orientação política e tal. O filme terminava de uma maneira maravilhosa, um cara meio doido assim dizendo 'antigamente, quem regia esse rio era o São Francisco lá no céu, mas agora...', porque eles tão no ponto de onde saí a transposição, e a oficina aconteceu exatamente no momento em que a transposição tava começando, '... mas agora quem manda nesse rio é o Lula lá em Brasília'. Era genial, pô! Aí os caras 'não, esse cara é um doido, não pode botar um doido desse'. Um cara poeta... E, ao mesmo tempo, tinha uma produtora aqui do Recife, que fez uma série de oficinas lá no xukurus, que chama Cabra Quente, e produziu uma série de vídeos num estilo militante, discursivo, tudo que a gente não faz, não gosta de fazer, entende? Mas que os truká adoraram. Foi o discurso dos 500 anos, um negócio e tal. E o filme mais poético, que tinha uma velha falando sobre a morte e a solidão, enfim, que eram coisas assim de momentos de magia, eles, as lideranças, rechaçaram o filme. Queriam um filme militante-discursivo que os xukurus tavam fazendo.

Pergunta: É porque tem toda a história de criminalização dos xukurus.

VC: É, mas é a criminalização de todos eles, todos eles. Tem assassinato em todos os lugares, repressão em todos os lugares, quer dizer, os índios do Nordeste é um sofrimento só. E agora provavelmente a gente vai fazer um trabalho com os fulni-ô que tão há dois anos pegando no nosso pé e eu fui lá saber se tinha demanda e tinha, era afinado com um coletivo significativo. No caso dos truká era um grupo de jovens que fazia teatro, o problema é que não bateu com as lideranças. Talvez se tivesse sido um trabalho de aproximação e tal. Por exemplo, foi feito o trabalho do Felipe Bandeira lá no Ceará, que ele fez uma coisa - que ele fez nesse caso, né - mas, evidentemente, quando os índios viram o filme - que tem toda uma linguagem mais poética - não gostaram. Mas aí eles foram convidados a várias projeções em Fortaleza e sentiram que o público tava gostando, que tava transmitindo um negócio legal, e eles foram se enxergando no filme e acabaram assumindo o filme. Talvez os truká não tenham tido essa oportunidade. Também se espera uma coisa, depois é outra. E tem muito essa coisa das coisas que já foram incorporadas, daquilo que os brancos não gostam de ver, de como os brancos esperam vê-los. Que é um pouco o drama do Nordeste, que é um pouco obrigado... essa questão da imagem. E, principalmente, o outro é julgado... você não entra no outro, você encaixa pelas aparências, pela imagem, quem é índio, quem não é índio. Então os índios do Nordeste se sentem obrigados a ir na loja da Funai e comprar um cocar de índio caiapó e se travestir de índio, como se ele não tivesse a legitimidade histórica da sua identidade indígena. Espezinhada, massacrada, perdendo língua, perdendo traços culturais, mas a sociedade toda julga, pressiona, condena, e eles tem que reagir, se defender, tem que ir lá comprar um cocar, botar o cocar, falar 'ó, é isso, é assim que vocês me reconhecem como índio? Então tá aqui'. Esse jogo de reconhecimento do outro que cria toda essa dinâmica, tudo em cima da imagem.
Pergunta: Como é que funcionam as oficinas, vocês procuram eles, eles procuravam vocês?

VC: Eles procuram a gente.

Pergunta: Tem ligação com a Funai?

VC: Nenhuma. Muito pelo contrário...

Pergunta inaudível

VC: Eu tava trabalhando com meus amigos da Funai, a equipe era oficial da Funai. Eu tenho grandes amigos na Funai. A questão não é pessoal, é estrutural. Agora, naquele momento, esse diálogo, ela tava muito insegura (uma índia presente em “Corumbiara") sobre quem éramos nós. Fazendeiros? Como situar a gente, né... E a primeira vez que ela consegue falar com o cara - achamos um cara [intérprete] que consegue entendê-la - tem esse diálogo pra poder confirmar 'pô, mas quem são esses caras?!' Tudo isso era muito difícil. Tem uma cena, não me lembro mais, acho que não entrou no filme. Nós recolhemos... todos aqueles objetos que a gente recolheu em 86 no local do crime, a gente guardou. E quando a gente fez os dois contatos, a gente levou esses objetos. O índio sempre perguntava 'vocês vêm de cá?', e apontava o lugar pro massacre. 'Não, a gente vem de cá' [e o intérprete apontava na direção contrária]. Aqueles objetos, eles imediatamente reconheceram, 'isso é da fulana que mataram...'. [Aí] surgiu uma dúvida, e imediatamente perguntaram pro intérprete 'mas afinal, eles vêm de cá [lugar do massacre] ou vêm de cá [direção contrária]?'. Eles falaram 'vêm de cá' [direção contrária]. Mas 'como é que eles têm esses objetos?'. Então, finalmente, tem muitas questões, muitos medos. E naquele diálogo, o velhinho - esse povo dava assistência de remédio e tal - o velhinho tava tranquilizando ela.


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