A primeira parte do debate aqui.
Pergunta: Se duas tribos são contatadas por dois diferentes grupos
de cinema, a gente pode dizer que a diferença não está tanto entre as tribos
mas naquilo que foi semeado nelas?
Vincent Carelli: Bom, sem dúvida. É uma marca, é um trabalho
colaborativo antes de mais nada. Então, os frutos desse trabalho tem a ver com
ambas as partes, tem um input aí, input importante de ambas as partes,
índios e não índios. Cada input
diferente dá uma química diferenciada. A maneira de conduzir o processo pode
levar.
Pergunta: Porque eles não tinham o conceito minimamente teórico do
que era filmar, então eles não podiam ter um estilo próprio antes de conhecer a
câmera…
VC: Não, claro. E nada é cerebral, sabe?! É uma coisa mais
intuitiva.
Pergunta: Esses vídeos feitos pras escolas tão disponíveis em algum
lugar?
VC: Olha, tem uma coleção chamada “Cineastas indígenas” que tá na Livraria Cultura. Tem 7 números,
por povo. Esse (mostra um DVD) é o
último que saiu sobre os guaranis do Rio Grande do Sul. É uma coleção que cada
DVD vem com quatro filmes. Esse, no caso, vem com três. São dois filmes de
autoria indígena, um filme histórico sobre o povo e um making off, meio que pra
entender qual foi o processo de produção e qual é o interesse deles em filmar e
produzir filmes. Como é que acontece o processo em cada povo. E vem também um folheto,
uns textos. Essa é a coleção que a
gente tá incrementando com o melhor da produção desses últimos 12 anos de
formação.
Pergunta: Nesse processo das oficinas, com cada etnia é diferente.
As oficinas tem uma certa unidade de pensamento, desse cinema direto,
intuitivo, ou com cada etnia você tem que reagir de uma determinada maneira?
VC: É, acho que o segredo é você tá aberto e antenado. Qual é o
desejo, qual é o tema, o que tá acontecendo, enfim, e por onde as coisas vão.
Tem índios que gostam de fazer ficção. Tem uns que são mais políticos. Aí é que
tá a grande magia dessa alquimia, é perceber o outro e entender o desejo e o
potencial. Então, é por isso que você entra na oficina. Você não tem a
obrigação de produzir um filme porque isso já gera um estresse, tanto em quem
tá dando a oficina quanto nos alunos. Foda-se, se não tiver filme, não tem
filme, não tem problema. Isso aí já é fundamental. Quem entra numa oficina de
uma semana e acha que vai produzir um curta, editar e finalizar, não vai ser
assim. Um filme pode levar 20 anos pra fazer ou pode levar meia hora, sei lá,
mas não pode ser as coisas pré-arrumadas. Então tudo depende disso. De repente
você começa um filme e vai desenvolvendo numa próxima oficina. Tem filmes que
levaram duas, três oficinas pra ficarem prontos. Tem uns que saíram do forno
ali na hora. O que não pode ser é – aí é que tá o teu ponto de vista – é ser
condescendente. “O que fizer tá bom”, “ah é índio, pô”, ou “é da periferia”,
sabe?! E tudo bem, se faz registro, não precisa fazer um filme. Fazer um filme
tem que ser uma coisa capaz de sustentar uma platéia, emocionar um público.
Pergunta: A gente observou que com a presença da câmera, eles podem
mudar o comportamento. No início, um grupo voltou a fazer um ritual que não
fazia há décadas, meio que aproveitando a câmera pra poder registrar. E também
teve o caso do índio do buraco, que ficou muito agressivo e você imagina que
por conta dessa câmera. Você se preocupou com essa naturalização quando foi
filmar? Porque a imagem que a gente tem deles é a imagem que vai se perpetuar,
como naquele outro caso que o grupo do fazendeiro tirou foto com índios com
roupas de branco e isso ficou perpetuado. Enfim, você se preocupou em tornar o
comportamento deles natural, pra não causar um falso estereótipo?
VC: Olha, a presença de uma câmera muda, é a coisa mais universal
que tem. Não é só índio que muda de comportamento quando tem uma câmera.
Principalmente se tiver consciência do que é que aquela câmera tá fazendo. E
ver as imagens e tal, é uma coisa que o vídeo possibilitou. E o cinema, se
puder chegar num lugar desse, passa o ano filmando sem que ninguém saiba o que
você tá fazendo, né. Tem um filme clássico do cinema que é “Crônica de um
verão”, do Edgar Morin e do Jean Rouch, que é sobre isso: como as pessoas
mudam, como uma câmera numa cena muda o comportamento das pessoas. É a coisa
mais universal que tem. E eu acho que a gente joga exatamente com isso, é isso
que é estimulante criativamente. A partir do momento em que o cineasta chega
pra pessoa e estabelece um contrato, “pô, eu queria fazer um filme com você,
posso filmar e tal?”; a partir do momento em que se estabelece esse trato, a
pessoa que vai ser filmada começa a construir um personagem e – o que é
fantástico, principalmente nesses filmes de personagens no cotidiano – o input dessas pessoas ao criarem seus
personagens é incrível. Quer dizer, eu costumo dizer que eles são tão autores
como os cinegrafistas que tão filmando eles. Porque ele propõe coisas,
atividades, cria diálogos, desenvolve conversas. É isso justamente que é a
magia do cinema, vamos dizer. A partir do momento que você liga a câmera,
começa a acontecer coisas que não aconteceria se essa câmera não tivesse ali. E
isso que você trabalha, né. É isso que gera tudo. O imprevisto acidental, o
imaginado, o criado. Você pode até, em outros filmes, criar situações: “Se eu
juntar fulaninho com sicraninho em tais circunstâncias, eu vou ter um embate
que pode ser interessante pra revelar isso e aquilo”. Então eu acho que o
cinema nasce a partir desse momento em que tem uma câmera que interfere numa
cena e muda o comportamento das pessoas. E esse é o teu material pra filmar.
Pergunta: Em “Corumbiara” eles [os índios] tinham noção do fato de
estarem sendo filmados, vocês mostravam a filmagem, o material a eles?
VC: Em "Corumbiara” a gente mostrava. Inclusive, durante todo
o processo, quando descobre un cara que fala a língua, vai revisando o material
com eles e traduzindo. Um caso decisivo, muito particular, muito estranho,
muito atípico – no sentido de que eles foram contatados em 95, já se passaram
mais de quinze anos – são pessoas tão traumatizadas que é como se o contato não
tivesse acontecido, porque eles não aprenderam a falar português, eles não se
interessaram. O índio é um ser de uma curiosidade devoradora desse mundo de
fora, mas eles continuaram vivendo ali numa bolha, que é uma coisa muito
atípica. Mas é que eles estão numa situação tão fragilizada – na verdade eles
estão condenados a morte, né, porque eles não podem se reproduzir, são todos
parentes, é como se tivessem esperando a morte -, até as imagens, a gente
mostrou outros povos pra eles mas eles nunca se interessaram muito e meio que
se comportam em relação a câmera quase como se a câmera não existisse. Agora
que aconteceu uma epidemia, foram pra o hospital, tiraram radiografia, né... e agora eles entenderem, associaram a radiografia à fotografia, fosse pra
curar. Então eles tavam com essa nova loucura, você chegava com a máquina
fotográfica e eles diziam 'aqui, aqui ó, aqui tá doendo'. Parecia que era
um objeto xamanístico pra passar a dor, sei lá.
Pergunta: Existe alguma relação do uso dos alucinógenos pelos
índios com a produção audiovisual deles?
VC: A ayahuasca é chamada
no Acre de cinema de caboclo. Mas aí você não precisa de câmera, você fecha as
pálpebras...
Pergunta: A ayahuasca é
uma coisa tão potente que uma pessoa com a câmera na mão pode alcançar certos
níveis de percepção estética muito diferentes.
VC: É, e de repente quando ele assistir, quando ele tiver bom, não
vai reconhecer nada do que ele filmou... Os índios hunikui, os chamados kaxinawá,
fizeram um filme sobre os cantos do cipó (HuniMeka, os Cantos do Cipó),
sobre a ayahuasca, mas essa
transposição da alucinação pro cinema ainda não aconteceu.
Pergunta: Você sabe de algum projeto parecido com o "Vídeo nas
Aldeias" nos outros países?
VC: No mundo inteiro. E aliás foi encontrando outras pessoas
trabalhando em festivais internacionais... (atende
o telefone). Onde eu parei? Sim, tem no mundo inteiro. Em 80 começava... na
verdade em 86 começavam simultaneamente três projetos que não se conheciam:
dois deles no México e na Bolívia foram de inspiração do Ateliers Varan, e eu
fui conhecer o Ateliers Varan uma década depois. Mas em 86 começou um projeto
similar no Brasil, na Bolívia e no México. Hoje tem em muitos países da América
Latina, tem na Índia, na África, nas Américas, no Alasca, enfim, na Índia
nativa...
Pergunta: Existem ainda esses projetos?
VC: Sim, tem muitos. Quer dizer, no primeiro mundo, nas minorias do
primeiro mundo, que são os países mórbidos, a Finlândia, a Noruega, o sangue, é
uma população... Nos Estados Unidos, no Alasca. Os aborígenes da Austrália têm
uma rede de televisão. Tem inclusive cota. Nas televisões comerciais, tem que
ter uma cota de aborígenes trabalhando, de faxineiro a diretor. Nas minorias de
primeiro mundo, quer dizer, as novas gerações têm tido acesso a escolas,
faculdades de cinema, então se produz coisas que são distribuídas
internacionalmente. Inclusive os Maori
da Nova Zelândia, os Inuit ganharam o
Cannes há uns anos atrás. E tem o terceiro mundo... hoje não sei, a gente já é
primeiro?! Mas tem projetos mais localizados, mais populares, né. Agora essa
coisa de acesso a escola de cinema também é uma discussão nos cineastas
aborígenes da Austrália, 'porra, agora que a gente tá certo, a gente tá no
modelo Hollywood?'. Qual é a consistência da nossa especificidade de
linguagem? Há toda uma discussão, uma auto-crítica, um debate rolando entre
eles. Em que medida a escola de cinema tá formatando cineastas aborígenes? Que
tão replicando um modelo de cinema que se aprende na universidade.
Pergunta: As imagens do [programa] “Fantástico” que você fez teve uma reação
agressiva por parte dos fazendeiros. Como você se sente em relação a isso?
Culpado? Porque os índios acabaram prejudicados, você tentou ajudar, mas a
reação...
VC: É o embate, né?! Na época, advogados, deputados fizeram...
foram pra TV globo, foram pro [jornal] Estadão, pressionaram o ministério. Era
impossível... Não, não me sinto culpado não. É uma luta, às vezes você perde e
às vezes você ganha. Mas eu não sabia que tinha esse índio lá, que o cara ia
ver o fantástico e ia lá atirar no cara...
Pergunta: Não foi sua intenção, é uma consequência indireta de uma
ação sua que tinha um objetivo completamente diferente.
VC: Mas, por outro lado, se foi demarcado, se a Justiça Federal
isolou as áreas, se obrigou o governo a demarcar as áreas, foi graças às
imagens. Então foi pra o bem e foi pra o mal. Essas imagens foram fundamentais
pra sobrevivência dessas outras pessoas...
Pergunta: Nesse processo todo de “Corumbiara”, você teve medo?
VC: Se eu tive medo? Eu tive quando eu fiz aquele depoimento de
câmera escondida da mulher. Ali eu tive bastante medo. Porque o cara, o
pistoleiro, ia toda hora no hotel, ameaçava a mulher e dizia 'você falou, você
não falou'. Eu ia de noite pra central telefônica, os caras começaram a falar,
'ó, não anda sozinho de noite'. Começou a se criar um clima assim, eu já tava
jurado. Esse foi o momento, o ápice: na hora que os fazendeiros sentiram que eu
tinha eles e que eu achava e eles achavam que eu tinha eles na minha mão.
Pergunta: E dos índios?
VC: Não, dos índios eu nunca tenho medo. De polícia eu tenho medo,
de fazendeiro eu tenho medo, madeireiro também, mas índio não.
Pergunta: O que foi que você aprendeu com eles, até que ponto você
se deixou ser tomado por essa experiência com os índios?
VC: Olha, eu acho que a experiência do choque cultural, que é
exatamente o que eu vivi, é uma experiência fundamental pra qualquer cidadão do
mundo hoje em dia. Nesse mundo que vai ser implodido por quê? Por guerras de
religião? Fora outras catástrofes, ambiental, sei lá, o apocalipse anunciado de
uma civilização. Se todas as civilizações passadas afundaram em algum momento,
por que vocês acham que a nossa não vai colapsar? É claro que, se não cair a
ficha, vai colapsar mesmo. Então essa experiência do choque cultural é
fundamental pra descoberta do outro, né, e descoberta da riqueza, da
profundidade histórica da humanidade, enfim, é uma experiência pra você [se]
abrir. O drama é querer achar que o teu segmento social, o teu país, é dono de
alguma verdade. Essa é a coisa mais fundamental em todo mundo: se diz 'viajar
abre os espíritos'. Até você sai daqui e vai a primeira vez pra Europa, você
descobre um novo olhar sobre o teu país. Então esse é que é o processo
fundamental.
Pergunta: Você chegou a participar das práticas espirituais dos
índios?
VC: Sim, sim, mas eu sou ateu até a raiz do cabelo. Mas eu admiro
muito religião como uma criação do espírito humano e de um sentido de um
universo cultural. Me interessa nesse sentido, embora eu seja ateu. E essa
dimensão da espiritualidade, de sentir, entender e ter consciência de que tua
percepção vai até um certo ponto. E exercitar um mundo de enigmas é a coisa da
religião, né. Eu já fui curado no xamanismo, acredito que tenha uma eficácia em
todo o processo. Os índios sofrem de muitas doenças também, psíquicas
inclusive. Então o tratamento xamanístico é extremante eficaz nesse tipo de
síndrome, né. Mas não aderi nem ao daimismo nem... adoro tomar um cipó [ayahuasca], mas não vou vestir farda...
Pergunta: Uma vez li um texto falando sobre os povos antigos da
América Central e o teórico tava justamente relacionando a ideia que a gente
tem de imagem à filosofia desses povos, dizendo que talvez se a gente
concebesse a imagem fora da representação, daquilo da imagem ser alguma
verdade, fiel a realidade, talvez a gente se aproximasse de algo mais
interessante. Então queria saber se existe essa tendência nas imagens que os
índios produzem de sair dessa coisa 'vamo mostrar uma verdade aqui'? Se eles
introduzem aspectos da simbologia deles, se tem esse caráter de ficção.
VC: Sem dúvida, a mitologia é totalmente transformacionista. No
princípio, gente e bicho era tudo igual, falava, entendia. E tinha negócio da
perspectiva: 'Quando eu vejo ele, eu vejo um animal, mas eles entre eles são
gente'. Então esse universo mitológico deles demanda um estúdio de efeitos
especiais no nível do de [George] Lucas, que é uma coisa muito louca. E eles
adorariam fazer mais. A gente nunca enveredou por aí. Um pouco a saída seria a
animação pra dar vazão ao nível de delírio transformacionista das lendas e da
mitologia. Acho que a gente não alcançou esse... espero que nas próximas
gerações de cineastas indígenas tenha algum que desenvolva essa veia aí.
Pergunta: Então vocês já fizeram animações também?
VC: Já fizemos pouca, muito pouca coisa. E fizemos um pouco de
ficção também. Tens uns que só se interessam por ficção. Como é que é o
negócio? Você vem com uma proposta e, de repente, você bate num lugar que não é
isso: 'Ah, então cada um escolhe seu personagem, seu cotidiano e tal'. De
repente me aparece um aluno que filmou uma lendazinha, um menino que vai atrás
de um fantasma – ele filmou
editado! – e mostra o negócio, 'porra, cara, que maravilha, vamo fazer mais!' e
não sei quê. Aí o cara vira 'é, pois é, mas eu não tenho tempo, tenho que
filmar o cotidiano, personagens, não sei quê'. Aí cai tua ficha, você fala
'porra, o cara tem que fazer ficção! Vai lá, que maravilha!'. Você tem que
'errei, desculpe, vai lá, faz aí'. Esse é o negócio, o desafio total, quer
dizer, cada momento o que é que cola, como rola, enfim. Não dá pra entrar em
fórmula porque aí acabou tudo. Por exemplo, o vídeo-carta (MARANGMOTXÍNGMOMÏRANG Das crianças Ikpeng para o mundo),
que faz um puta sucesso em todo lugar, vários outros grupos tentaram fazer e
ficou um negócio super chato, não saiu nem um filme – graças a deus. E muitas escolas fizeram resposta ao
vídeo-carta, mas não tem uma que eu... Então reproduzir fórmula... porque
aquilo nasceu de um momento deles, inventaram aquilo e fizeram. Outros grupos
quiseram copiar mas não rolou.
Pergunta: Você já fez alguma coisa com os xukurus?
VC: Não, não fiz. A gente trabalhou um pouco com os truká, né. Porque a gente procurou o
Centro Luiz Freire e eles indicaram os truká
pra gente e tal. Os xukurus, como é
mais perto daqui, tem um monte de gente trabalhando. Mas eu não fui nas
oficinas [dos truká]. O primeiro
trabalho que saiu é um filme que eu até gosto, mas a comunidade rechaçou.
Comunidade muito grande, são mais de 5 mil pessoas, tem milhares de cabeças,
tem uma tendência, uma liderança, uma orientação política e tal. O filme
terminava de uma maneira maravilhosa, um cara meio doido assim dizendo
'antigamente, quem regia esse rio era o São Francisco lá no céu, mas agora...',
porque eles tão no ponto de onde saí a transposição, e a oficina aconteceu
exatamente no momento em que a transposição tava começando, '... mas agora quem
manda nesse rio é o Lula lá em Brasília'. Era genial, pô! Aí os caras 'não, esse
cara é um doido, não pode botar um doido desse'. Um cara poeta... E, ao mesmo
tempo, tinha uma produtora aqui do Recife, que fez uma série de oficinas lá no xukurus, que chama Cabra Quente, e
produziu uma série de vídeos num estilo militante, discursivo, tudo que a gente
não faz, não gosta de fazer, entende? Mas que os truká adoraram. Foi o discurso dos 500 anos, um negócio e tal. E
o filme mais poético, que tinha uma velha falando sobre a morte e a solidão,
enfim, que eram coisas assim de momentos de magia, eles, as lideranças,
rechaçaram o filme. Queriam um filme militante-discursivo que os xukurus tavam fazendo.
Pergunta: É porque tem toda a história de criminalização dos xukurus.
VC: É, mas é a criminalização de todos eles, todos eles. Tem
assassinato em todos os lugares, repressão em todos os lugares, quer dizer, os
índios do Nordeste é um sofrimento só. E agora provavelmente a gente vai fazer
um trabalho com os fulni-ô que tão há
dois anos pegando no nosso pé e eu fui lá saber se tinha demanda e tinha, era
afinado com um coletivo significativo. No caso dos truká era um grupo de jovens que fazia teatro, o problema é que não
bateu com as lideranças. Talvez se tivesse sido um trabalho de aproximação e
tal. Por exemplo, foi feito o trabalho do Felipe Bandeira lá no Ceará, que ele
fez uma coisa - que ele fez nesse caso, né - mas, evidentemente, quando os
índios viram o filme - que tem toda uma linguagem mais poética - não gostaram.
Mas aí eles foram convidados a várias projeções em Fortaleza e sentiram que o
público tava gostando, que tava transmitindo um negócio legal, e eles foram se
enxergando no filme e acabaram assumindo o filme. Talvez os truká não tenham tido essa oportunidade.
Também se espera uma coisa, depois é outra. E tem muito essa coisa das coisas
que já foram incorporadas, daquilo que os brancos não gostam de ver, de como os
brancos esperam vê-los. Que é um pouco o drama do Nordeste, que é um pouco
obrigado... essa questão da imagem. E, principalmente, o outro é julgado...
você não entra no outro, você encaixa pelas aparências, pela imagem, quem é
índio, quem não é índio. Então os índios do Nordeste se sentem obrigados a ir
na loja da Funai e comprar um cocar de índio caiapó e se travestir de índio, como se ele não tivesse a
legitimidade histórica da sua identidade indígena. Espezinhada, massacrada,
perdendo língua, perdendo traços culturais, mas a sociedade toda julga,
pressiona, condena, e eles tem que reagir, se defender, tem que ir lá comprar
um cocar, botar o cocar, falar 'ó, é isso, é assim que vocês me reconhecem como
índio? Então tá aqui'. Esse jogo de reconhecimento do outro que cria toda essa
dinâmica, tudo em cima da imagem.
Pergunta: Como é que funcionam as oficinas, vocês procuram eles,
eles procuravam vocês?
VC: Eles procuram a gente.
Pergunta: Tem ligação com a Funai?
VC: Nenhuma. Muito pelo contrário...
Pergunta inaudível
VC: Eu tava trabalhando com meus amigos da Funai, a equipe era oficial
da Funai. Eu tenho grandes amigos na Funai. A questão não é pessoal, é estrutural.
Agora, naquele momento, esse diálogo, ela tava muito insegura (uma índia presente em “Corumbiara") sobre
quem éramos nós. Fazendeiros? Como situar a gente, né... E a primeira vez que
ela consegue falar com o cara - achamos um cara [intérprete] que consegue
entendê-la - tem esse diálogo pra poder confirmar 'pô, mas quem são esses
caras?!' Tudo isso era muito difícil. Tem uma cena, não me lembro mais, acho
que não entrou no filme. Nós recolhemos... todos aqueles objetos que a gente
recolheu em 86 no local do crime, a gente guardou. E quando a gente fez os dois
contatos, a gente levou esses objetos. O índio sempre perguntava 'vocês vêm de
cá?', e apontava o lugar pro massacre. 'Não, a gente vem de cá' [e o intérprete
apontava na direção contrária]. Aqueles objetos, eles imediatamente reconheceram,
'isso é da fulana que mataram...'. [Aí] surgiu uma dúvida, e imediatamente perguntaram
pro intérprete 'mas afinal, eles vêm de cá [lugar do massacre] ou vêm de cá
[direção contrária]?'. Eles falaram 'vêm de cá' [direção contrária]. Mas 'como
é que eles têm esses objetos?'. Então, finalmente, tem muitas questões, muitos
medos. E naquele diálogo, o velhinho - esse povo dava assistência de remédio e
tal - o velhinho tava tranquilizando ela.
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