Posted in Nº 3 (2011/2) by Revista Estudos Políticos on novembro 1st, 2011
1- Antes de tudo, gostaria que comentasse a sensação, presente no seu primeiro filme, Hiato, de que as pessoas estão sempre muito próximas de entidades muito abstratas, tais como direitos, quão mais o aspecto duro da realidade sobre elas se impõe. Digo a dureza no sentido da fragilidade. Porque no que concerne aos guardas e autoridades, quão mais a dureza lhes confere poder, menos as entidades abstratas se manifestam. Como o documentarista de cenas urbanas conflituosas vive esse paradoxo?
As regiões onde vivem as pessoas que são mostradas no Hiato estão arrasadas até hoje, mesmo que a conjuntura política local seja outra. De fato, elementos como cidadania, direitos humanos, estado de bem estar social e outros, se mostram distante daquela realidade cotidiana e os moradores de lá sabem muito bem disso. A ida ao shopping fazia parte dos esforços de uma semana de ações por parte dos movimentos sociais do Rio de Janeiro referente aos sete anos da chacina de Vigário Geral onde foram assassinadas mais de vinte pessoas. Esse episódio do shopping foi o único que tencionou essa discussão em um nível maior de abstração. Isso se passou no ano 2000 e vi somente pela televisão. Na época me lembro de ter entrado ao vivo no jornal local uma pauta que esperava uma onda de saques e ‘arrastões’. Depois de sete anos, quando precisei fazer um exercício para a escola de cinema Darcy Ribeiro, deciditrabalhar essa história. Já tinha conhecido integrantes do episódio que estudavam na Universidade comigo, lido artigos que abordavam o assunto, assistido palestras que lembravam tudo etc. Pode inicialmente parecer um paradoxo, pessoas com demandas tão concretas realizarem uma intervenção desse tipo, mas acontece que isso foi somente o que ficou; justamente por esse diferencial. Na época houve manifestação no Centro da cidade, recolhimento de abaixo-assinado, comissão entregando documentos ao governador, discurso em carro de som na porta da Alerj, distribuição de vários informativos… Entretanto, a ida ao maior shopping de classe média/alta na zona sul com mais de 300 pessoas muito pobres em vários ônibus e o anúncio à grande imprensa instaurava um gesto perturbador que surpreendeu muita gente.
2- Primeiro você filmou o Hiato e depois o Atrás da Porta. Mas, para mim, depois de assistir ao Atrás da Porta foi que os sentidos do Hiato se abriram com mais consistência. No Hiato as portas se abrem automaticamente, no Atrás da Porta elas precisam ser arrombadas. No primeiro a repressão se deve em muito ao olhar desgostoso, no segundo pela obrigação dos militares uniformizados, ou outros agentes do poder público. No primeiro a pobreza busca a luz, no segundo se esconde dela. No primeiro há o espetáculo da própria condição, no segundo certo envergonhamento. Até a voz que no segundo filme pede “Filma Tudo”, busca se esconder. Como avalia essas distinções?
Entre os dois trabalhos houve mais quatro curtas. Outras formas foram experimentadas e talvez venha daí a referência de maior consistência aberta aos sentidos. Fico feliz que relacione os dois, pois o Atrás da Porta veio mesmo em decorrência do Hiato. Os próprios sem-teto me chamaram para registrar as novas ocupações e despejos devido à circulação e o grau de debate que o curta gerou. E eles foram muito pouco exibidos em conjunto. Também penso neles como complementares. Essa diferença que você identifica também vem da diferença dos processos. No Hiato fui, anos depois, conversar com os manifestantes e nos utilizamos muito de imagens de arquivo da grande imprensa como também de arquivos dos próprios manifestantes. Na ocasião fui com a Helen Ferreira, que tinha registrado em VHS toda a movimentação no Shopping na época. Aquilo tudo era distante. Já no Atrás da Porta, eu e Chapolim (fotógrafo morador de uma ocupação que também aparece no vídeo) estávamos registrando todo o processo e a ação da polícia. Chegamos ao ponto de que em um despejo, quando toda a grande imprensa já tinha ido embora, de receber ameaça de prisão se continuássemos filmando. Quando no último despejo o policial federal diz que serei o último a sair e que eles vão ficar lá dentro só comigo eu não consegui nem apontar a câmera diretamente para seu rosto. Em ambos os contextos houve repressão, imagina um shopping enorme parado. Quantos empresários não exigiram uma punição exemplar, posto que o shopping parou? E se a moda pega? E de fato tivemos caso de abuso e agressão posterior, aos militantes. Mas esse risco não havia diretamente na feitura do curta, diferentemente do segundo caso. Com efeito, os vídeos realmente trabalham a vergonha de maneira diferenciada. Com relação a vergonha no Hiato, vejo o ato do shopping como a potencialização da própria condição no sentido de combate pelos signos da própria pobreza. Isso que te envergonha, nossos signos de pobreza, nos fortalece. Existe uma violência gestual nessa primeira vergonha. Menos espetáculo que ato performático. Com relação ao Atrás da Porta, a vergonha se apresenta em um sentido mais complexo. Me lembro de como propõe duramente Primo Levi em relação aos campos de concentração nazistas; vergonha de ter vivido aquilo e não conseguir impedir. Vergonha de não superar uma lógica que mantém centenas de prédios fechados na região central e expulsa pessoas para onde não há qualquer oportunidade digna de subsistência. Vergonha de ser homem.
3- Poderíamos dizer que a estética da sobrevivência é superior a do shopping center?
Em Campo Belo, Nova Iguaçu, onde vive grande parte das pessoas que participaram do ato no shopping, de 2000 pra cá tivemos a atuação incisiva de milícias, grupos de extermínio, narcotraficantes, policiais e com isso muitas execuções. Na época, cada vez que chegávamos mais perto de lá e pedíamos explicação de como chegar lá, éramos perguntados o que íamos fazer em um local como aquele. Isso já bem longe do centro do Rio. E a estratégia foi exibir imagens de arquivo e depois realizar a entrevista. Os entrevistados iam vendo as imagens e enumerando alguns que já haviam sido mortos. Além de pessoas executadas, muitas mortes por doença… O que quero dizer com isso é que cada uma dessas estéticas de luta só pode valer mais que a outra se forem artificialmente separadas, posto que se articulam em relação de complementariedade. A ida ao shopping e a discussão da segregação disfarçada em nossa cidade recobre seu lado de sobrevivência e vice-versa. Acho que meu primeiro vídeo tenha sido excessivamente expositivo e pra muitos isso tem um menor valor estético no panorama geral do audiovisual. Talvez pela forma como a televisão se utilizou, e ainda utiliza muito, dessa metodologia. A recorrência dessa forma de documentário pela mídia realmente não acrescentou muito no enriquecimento do campo das narrativas audiovisuais. Muito pelo contrário, vemos com isso uma proliferação de clichês.
Durante o curso de cinema, realizei paralelamente um estudo que recuperava a divisão feita por um filósofo de um cinema ancorado na dimensão do homem como estímulo-resposta e outra baseada na ruptura desse par. A intenção era problematizar os automatismos contidos em cada campo. A diferenciação realizada por Gilles Deleuze entre imagem-movimento e imagem-tempo se tornou tão empregada que gera alguns usos acomodados. Grosso modo, o mundo da primeira imagem é ligado ao cinema narrativo que se tornou clássico; já o da segunda seria remetido ao cinema moderno que muitas vezes se vale de uma disnarratividade. O caso é que atualmente o clichê se instala em ambas as tendências, mas vemos um esforço concentrado de denúncia estritamente ao primeiro tipo de imagem. Como se os críticos, curadores, pesquisadores e até os próprios realizadores tomassem um partido; somente de um lado tudo é válido esteticamente. Veja o exemplo da reedição do Cineastas e Imagens do Povo de Jean Claude Bernardet. Ele acrescentou um capítulo mostrando como a ampla utilização de entrevistas nos documentários cada vez mais engessava a criação no cinema. Em dois anos a hegemonia dos filmes documentários nos festivais brasileiros era de documentários que não se valiam de entrevistas. O próprio Deleuze perto da conclusão desses 2 trabalhos acerca do cinema chega a afirmar que não se pode dizer que uma imagem valha mais que a outra. Que as imagens modernas não possuem valor algum se não estiverem à serviço de uma vontade de arte poderosa. Decidi realizar pela escola de cinema um curta filiado a cada uma das imagens. O Hiato pode ser remetido à imagem-movimento e o curta, pouquíssimo exibido, Ruído Negro à imagem-tempo. Ambas investidas foram experimentais em minha condição de aluno. Lembro-me de ter mostrado um corte preliminar a um professor que ficou incomodadíssimo com o rumo da montagem do Hiato. Para agredir o filme disse que o mesmo era um Globo repórter. Chegou ao cúmulo de intervir quando o curta foi selecionado para o festival de Havana no intuito de que o filme não fosse enviado pela escola para o festival. Acho que esse histórico do Hiato ajuda acrescenta nos questionamentos que levantou em relação as distinções estéticas.
4- Voltando ao tema da primeira questão, mas no contexto do segundo filme, o vocabulário das pessoas é muito mais conjuntural, mais circunscrito, e muito menos abstrato, e o sofrimento ao deixar as ocupações parece ser brutal. Há menos espaço para o conceito e se abrem demandas de vitalidade e confronto? A que atribui?
Ao momento decisivo que a cidade do Rio de Janeiro vive em relação aos megaeventos e os confrontos que com isso se anunciaram. Houve um acúmulo de análises conjunturais tanto no nível local quanto no global por parte de vários moradores de ocupações do centro da cidade. Chegou o momento em que ficou claro qual seria o modelo de intervenção urbanística que viveremos. E como a condição deles dialoga com o chamado capitalismo avançado. Os moradores de ocupações do Centro estão no olho do furacão imobiliário. Isso forçou pensar e denunciar o processo político que se encontram. Arrisco a dizer que os jogos Pan-americanos em 2007 foram decisivos nesse acúmulo. O aumento das ações policiais violentas nas favelas, as grandes obras que não visavam a melhora da qualidade de vida das pessoas, o acirramento da especulação imobiliária, aumento absurdo do custo de vida dos trabalhadores, inúmeros despejos de quem está no caminho do tal crescimento etc. Acho que o que surpreende no vídeo é a qualidade da fala das pessoas que estão fora da academia. São pessoas bem pobres e muito articuladas. Tentamos também com o vídeo oferecer a oportunidade de um encontro com a subjetividade daquelas pessoas. Mostrar, mesmo que minimamente, um cotidiano. Com o maquinismo cinematográfico funcionando, compartilham-se as vitórias provisórias como também toda a violência posterior. Fico muito feliz com os usos que o filme já serviu. Ele é utilizado constantemente em manifestações políticas, em atividades de greve, em núcleos de educação popular etc. Claro que se procurar problemas, ele certamente possui, entretanto, diferentemente do Hiato, que teve uma penetração mais rápida, o Atrás da Porta está abrindo seus caminhos aos poucos e, talvez, mais firme como instrumento de confronto ao estado de coisas. De fato, abrem-se as demandas da vitalidade e o conceito vem ao seu lado. As análises das tendências genocidas contidas nas políticas de terra promovidas pelo Estado, a serviço de uma classe dominante determinada pelo capital, que os moradores desenvolvem, surpreendem pelo nível de amplitude e alcance; e pela clareza nas estratégias e propostas. O pensamento destes moradores vai muito além da questão da moradia e a disposição de enfrentamento vem certamente desta consciência.
5- Como explica o cuidado com o habitat ocupado, apesar de toda transitoriedade? Ou será que é o oposto, a obrigação de cuidado com o transitório? Além disso, são nítidos os fragmentos de que uma ocupação prévia foi mal sucedida, mas a esperança das pessoas parece genuína. Como explicar?
Isso é realmente estranhíssimo. Já me relataram que é um fenômeno recorrente em ocupações que são despejadas em poucos dias. Aposto que seja pela intensidade do processo e pela imensa vontade de conquistar um espaço.
Colocar-se ao lado da família e se lançar numa luta tão desigual… é preciso territorializar rapidamente de alguma forma e isso acontece no excessivo cuidado ao recente espaço em disputa. O ato de “criar novos espaços de moradia” dos sem-teto se mostra um ato vital. Todos limpam, arrumam, transformam muito rápido, talvez, para ter força de continuar o confronto. Mesmo que nos pareça óbvio a transição e despejo seja o mais provável. Precisamos também marcar que várias ocupações seguem a luta e resistem no centro do Rio. Ocupações que se fortalecem tanto politicamente quanto juridicamente. Como é o caso da Manuel Congo, Quilombo das Guerreiras e Chiquinha Gonzaga.
6- Quando dá a câmera a uma das ocupantes, uma nova intimidade é criada. Poderia falar um pouco disso? Da mesma forma, há um momento em que mostra as imagens para elas, e de alguma forma se alegram. Como é essa tensão existente na necessidade de autonarrativa como sobrevivência?
Vários filmes já se aproveitaram desse procedimento, O Prisioneiro da Grade de Ferro, as realizações do projeto Vídeo nas Aldeias etc. No caso do Atrás da Porta, tudo se deu menos por um programa que uma atenção aos acasos. Já tinha assistido, sim, bons filmes onde os próprios protagonistas se registravam, mas não tinha qualquer intenção prévia nesse sentido. Até que a Sílvia segurou a câmera para que pudesse almoçar… e tudo aconteceu. Ela tinha gravado muito mais coisa, muito o filho dela e tive que cortar. Mas toda a montagem do filme foi um trabalho de desapego, pois gravamos cerca de 50 horas no total e ficamos no final com uma hora e meia somente. Certamente uma nova intimidade aparece ali. Assisti muitas vezes o trecho em que ela gravou e percebi como a imagem fica com uma leveza própria pelo jeito que ela conduz a câmera e aborda as pessoas. Ela em alguns minutos registrou e se aproximou das pessoas de tal maneira que quem assiste não deixa de se alegrar com aquelas imagens. De se sentir parte daquele coletivo. Acho que grande parte da indignação de quem assiste ao vídeo vem da proximidade que essas imagens proporcionam. Depois disso as imagens ficam um pouco mais dolorosas. Com relação a mostrar as imagens posteriormente aos moradores da última ocupação, foi uma ideia que tive já durante a montagem do filme. Me recordo de Cabra Marcado para Morrer e Boca de Lixo do grande mestre Eduardo Coutinho, de quando leva seus arquivos para gerar algumas fissuras nas pessoas que ele reencontra. Então preparei um pequeno corte de imagens dentro da ocupação seguido da série de agressões que as pessoas que estavam fora do prédio sofreram. Levei tudo em um ipod e mostrei antes da conversa. Fiz isso com os moradores e com os defensores públicos. Acho que isso pode ter gerado uma intensidade maior nas falas. Aproveitei e gravei eles assistindo… o que acabou entrando no filme. Novamente, não existe nenhuma novidade nessa tática, mas me alegro de ter percebido que isso foi necessário a realização desse longa. Se permite uma digressão, não vejo o Atrás da Porta um filme pretensioso que busca desesperadamente o novo, o autoral, o purismo do autêntico; vejo como um filme que encontrou e resolveu suas próprias necessidades com os recursos que dispunha, que soube retribuir o convite dos próprios moradores, como um filme pode somar aos seus esforços de luta. Acho que muitas exibições desses 2 filmes seguiram no esforço de unificação das lutas dos sem-teto em um ponto comum no âmbito das diferentes organizações que existem no Rio de Janeiro. Vejo grupos que debatem depois do filme como ampliar as lutas pela melhora das condições de vida de uma classe que não interessa muito para o crescimento, que se planeja para os próximos anos sob a ótica do capital. Tanto nesse filme quanto no Hiato a forma redonda da narrativa é um modo de retribuição. Nesses dois casos escapar de um filme puramente formalista foi uma escolha necessária. Debruço-me bastante sobre a questão da forma cinematográfica e as minhas poucas investidas nessa arte me mostraram a importância de tentar entender cada filme e a vida daqueles que estão no campo e no extracampo das lentes. Uma vez ouvi o montador Eduardo Escorel falar que sempre dá um filme. Essa afirmação, vindo de uma pessoa que se dedicou muito anos a montar filmes, sempre me soou enigmática. Penso que ela se dirige a inúmeras questões formais, que ela tem o intuito apontar uma saída possível aos impasses das questões últimas, as mais essenciais e as que discutem as funções teleológicas da arte cinematográfica. Não saberia aqui nem aprofundar nem esgotar essa afirmação, mas ela ultrapassa a questão de toda quantidade de filmes que fracassam, não se concretizam na montagem. Filmes que são montados, que se mostram nulos enquanto obra. Filmes, mesmo montados em diferentes versões continuam esvaziados de presença, como também filmes que encontram seu caminho. Filmes que tiveram suas vozes contempladas. Os filmes mais belos. Isso me parece essencial. Sempre dá um filme?
7- Como é se deixar trancar? Quanto tempo leva a última ocupação?
Infelizmente a ocupação durou apenas cinco dias. Desses, dormi dois dias lá. Tirando o último dia, nós podíamos sair e entrar. Havia uma barricada reforçada que seguravam a porta e dava certo trabalho na circulação. Diria que a experiência de estarmos trancado, na hora da ação policial, foi assustadora pela possibilidade de ficarmos fora do campo de visão das pessoas e dos grandes veículos de comunicação que estavam todos lá. Não sei se foi porque aquela região do Centro toda parou com aquela intervenção, não sei se foi porque a situação foi crescendo de proporção, se foi porque não conseguiram arrombar a porta, não sei exatamente o porquê, mas os policiais no final do processo estavam alterados e querendo pegar alguém para punir como exemplo. Nosso maior medo era ficarmos sozinhos com o Batalhão de Choque e a Polícia Federal lá dentro. Apesar de isso estar mudando, não se agride deliberadamente ou se executa uma pessoa normalmente na frente das câmeras. Na internet encontram-se inúmeros vídeos de ações policiais e de exércitos nos quais os próprios combatentes algozes filmam tudo que fazem, mas no geral ainda é uma forma de coibição a presença da câmera nos momentos que se quer agredir ou matar o outro. Alguns acharam que se devia continuar ali dentro e resistir ao máximo, já que a polícia não estava conseguindo arrombar o aparato de bloqueio da porta, mas só fomos até onde deu. Na hora decisiva se deliberou que era melhor, para resguardar todo o coletivo, abrir a porta e finalmente receber a dolorosa ordem de despejo. É preciso que se diga que passei recentemente na porta do prédio e ele está com um muro de alvenaria no local da porta e ainda não mora ninguém lá. É um prédio estatal, como inúmeros outros do Centro, que aguarda uma destinação que não é moradia popular.
8- Como percebe a fala dos juristas? Para mim de alguma forma, parece que ela não se sustenta.
Creio que essa percepção apareça pelo reforço de duas condições, exteriores ao papel das relações, que eles desenvolvem e que são mostradas no filme. Primeiramente, são os únicos com formação acadêmica que ganham voz no filme. E depois pela saturação atual que os especialistas adquiriram no papel de ratificação de qualquer questão quando lhe solicitam; sobretudo quando os moradores já tinham brilhantemente falado de como eles viam a conjuntura política do processo que os afeta diretamente. Geralmente no jornalismo um especialista chega com um ar de Voz de Deus para corroborar uma noção corrente. Os defensores públicos do núcleo de terras do Rio de Janeiro foram pessoas ativas no processo de defesa dos moradores e estão até hoje lá lutando em um quadro duro e desigual. Fui testemunha de como eles sofreram bastante também com tudo e ainda estão lá; a quantidade de despejos e demolições tende a continuar ampliando a medida que os megaeventos se aproximam e não só no Centro da cidade. É, talvez, preciso reconciliar o intelectual acadêmico com os ouvidos da sociedade. O Brasil possui um corpo docente na área de humanas que é extremamente rico e plural; as disputas das ideias precisam sair e transbordar os muros das universidades. É inegável que existe o intelectual-professor que está ali apenas para realizar uma pesquisa onde o meio se transforma em seu fim, ou seja, está na academia para direcionar sua pesquisa meramente para alastrar-se nos meandros burocráticos da instituição e aumentar seus ganhos pessoais. Muitos outros apenas se apoiam na universidade, mas querem debater e propor pensamentos. Além das ciências sociais, poderia destacar professores da filosofia, geografia, história, serviço social, psicologia, letras, cinema e comunicação que escapam das exigências tristes dos órgãos de fomento institucionais e pretendem pensar e criar. É preciso encontrar um canal, pois isso interessa muito as pessoas. No entanto, o que vemos é a formação de guetos que mal dialogam entre si. É necessário substituir as querelas de poder interno na academia pela disputa de alcance das teses. E isso precisa partir dos próprios professores. Se formos de fato todos intelectuais, posto que podemos pensar, por que aqueles que fizeram disso sua profissão precisam se isolar dos que tem outra atividade profissional? Queremos ouvi-los, conversar e algumas vezes argui-los… sem hierarquias. E no cinema acho que isso também deve se colocar assim. Fugir desse Hiii! Lá vem o intelectual. Inversamente, os filmes brasileiros mais acadêmicos são aqueles que negam mais veementemente a presença direta dos intelectuais. Não sei se isso tudo isso se iniciou com a assimilação das críticas às instituições que vários intelectuais europeus realizaram a partir década de 1960, ou com a crescente especialização que o doutor deve seguir atualmente, mas o caso é que o intelectual acadêmico se afastou muito das pessoas no debate de ideias e só publica e dialoga com seus pares. E desde que seu programa de pós-graduação tenha uma boa nota nos órgãos de fomento, suas publicações tenham uma boa qualificação, tudo vai bem e a meta foi cumprida. Aí transformam o meio acadêmico em uma finalidade.
9- Como percebe as ameaças que recebeu? Parece que antes você não podia entrar, e depois não podia sair. A identidade de documentarista lhe foi uma desvantagem?
Acho que a polícia está cada vez mais atenta com relação às diferentes coberturas instauradas nos fatos políticos que são obrigados a enfrentar cotidianamente. Não é de hoje que também realizam suas filmagens na cara dos militantes com o intuito de intimidação. Outro dia acompanhei uma novidade em uma manifestação em São Paulo contra o aumento das passagens dos ônibus. Tinha o contingente que normalmente se destaca para esse tipo de ato, choque, soldados, P2, oficiais etc. Mas tinha um pequeno grupo de policiais resguardando outros dois: um filmava e outro carregava uma grande mochila com uma antena… Eles estavam transmitindo em tempo real toda a movimentação. Provavelmente estavam recebendo ordens de acordo com o que transmitiam. Nesse dia houve uma série de agressões e os novos-documentaristas a serviço do estado estavam bem no meio delas… Sempre filmando. Quando eles partem diretamente para agressão dos militantes, que também sempre filmam, e tentam quebrar as câmeras, ou eles já cometeram excesso ou não há a presença da grande imprensa no momento. Não há mais manifestações políticas sem a presença de câmeras. Acho que naquele caso eles não tinham a dimensão que era um documentário que já vinha filmando há alguns meses, mas que era um registro que destinava apenas a proteção das pessoas envolvidas e posterior denúncia. Um oficial de justiça chegou a me ameaçar que me daria voz de prisão, pois não queria vídeo com suas imagens na internet. O tamanho da câmera é um importante diferencial que orienta a forma com que a polícia se relaciona com cada tipo de mídia. Falava pro Chapolim que às vezes era necessário aquele trambolho da grande imprensa para abrir portas e garantir nossa segurança… Ele sempre ria. Mas o que é estranho é essa mistura de poderes e instituições. Os policiais confiam de tal maneira na grande imprensa que é comum no Rio de Janeiro, incursões policiais em que os jornalistas vão junto com o destacamento mais avançado, mesmo na linha de tiro. Vemos jornalistas com colete à prova de balas, com roupas da mesma cor que os policiais; sem a possibilidade de distinção, a certa distância, se estão portando um fuzil ou uma câmera. Simultaneamente, vemos um número menor das denúncias das execuções como auto de resistência. Não precisa nem mesmo ter acontecido um acordo às claras. Fica assim: me dá oportunidade de imagens espetaculares do confronto, à moda das grandes produções, com base em tiroteio em favela, que reproduzo no jornalismo o que se viu no cinema. É o famoso ‘juntos e misturados’. Temos novos integrantes nas Tropas de Elite com propósitos em comum. É também comum morrer um jornalista na linha de frente… que sempre tentam transformar em herói. Penso que as filmagens minoritárias possuem a desvantagem, em relação à segurança, de estar claramente no lado oposto. Como ainda não se criminalizou totalmente os movimentos sociais há ainda a possibilidade de chamar os jornalistas e utilizarmos a presença deles como salvo-conduto das manifestações. Isso pode já estar em transição dado o grau de envolvimento dos grupos midiáticos nos projetos e nos financiamentos estatais. Se isso se efetivar totalmente teremos, com certeza, dias muitos mais duros.
Disponível em:
http://revistaestudospoliticos.com/perguntas-a-vladimir-seixas-sobre-os-documentarios-hiato-e-atras-da-porta-por-cesar-kiraly/
Atrás da porta: http://www.youtube.com/watch?v=NDQuRhsr8HI
Hiato: http://www.portacurtas.org.br/filme/default.aspx?name=hiato
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