[o começo do debate não foi gravado]
Vincent Carelli: (...) Eu tive nesse projeto (enciclopédia indígena online), justamente através desse projeto – eu fui o editor fotográfico – comecei a colecionar fotos dos acervos de jornais e museus, viajando e realizando a importância da imagem e da memória dos povos indígenas. E aí que entrei nesse negócio de produzir. Comecei a fazer cinema tinha trinta e poucos anos já.
Pergunta: No que você acredita?
VC: Eu acredito em quê? Bom, eu acho que eu tenho um fascínio pelo mundo indígena, pela diversidade cultural e, ao mesmo tempo, é chocante a invisibilidade e o desconhecimento que esse povos têm. Então é uma questão de prazer de conviver e conhecer e aprender esse mundo infinito. Um universo cultural e uma diversidade. O Brasil talvez seja o país no mundo com a maior diversidade indígena. Enfim, o prazer de conhecer, de conviver e o desafio de construir uma ponte de conhecimento e de respeito entre as corporações indígenas e a sociedade nacional. A todo momento você acompanha, sei lá, essa semana passada, esses quinze últimos dias, quando os pataxós do sul da Bahia ocuparam algumas fazendas, você sente na imprensa televisiva, escrita, que reflete um pouco o ânimo nacional, um asco, “os índios, perturbadores, invasores, impedindo produtores de...”. Enfim, em nenhum momento se faz uma leitura, porque não há interesse, não há profissionalismo na área jornalística suficiente e nem espaço político pra aqueles que queiram fazer isso, ir lá fazer uma pesquisa. Quer dizer, aquilo foi uma reserva reconhecida, demarcada, enfim, tem todo um processo histórico de desapropriação, desalojamento dos índios e tal, quer dizer, não é uma baderna que surgiu do nada. [São] décadas, pra não dizer séculos, de litígio. Mas você assiste na imprensa e, de repente, o supremo dá um ganho de causa pros índios – o que também é surpreendente, né – então eu acho que a gente vive essa dicotomia: uma simpatia pelos índios, porém não muito a sério. Quando é questão de lei, da terra... aí “essa não, pera aí, vamos falar sério!”, então é isso.
Pergunta: Como foi teu trabalho de pré-produção, especificamente no “Corumbiara”? Por que no começo eu ouvi que a equipe era reduzida. Tinha uma equipe por fora, te ajudando, até a achar os lugares, locações?
VC: Não, não teve nenhuma pré-produção, eu nem sabia que ia fazer um filme, na verdade. Nesse caso, quando começou, era uma coisa imediata de produzir um registro de um cenário de um crime que - sabe como é que é mata, mata se regenera, dali alguns meses [não haveria mais nada], alguns anos, então. Durante muito tempo, a ideia do filme esteve presente, né, mas eu fui atrás dos acontecimentos, não foi um negócio planejado. Os índios desapareceram, durante nove anos a gente ficou colhendo pistas, indo atrás, não encontrando nada, sendo barrado, até descobrí-los. Então [foi] meio a reboque, não teve pré-produção. É você na câmera... Naquela época tinha o negócio do repórter abelha: fazia tudo, fazia som, fazia câmera. Primeiro porque [não havia] recurso nenhum. É a necessidade de fazer, não é nenhum... é uma ferramenta.
Pergunta: A câmera era sua, o equipamento era seu?
VC: Sim, era do projeto, né. Começou em VHS, todos os primeiros trabalhos feitos em VHS, e aí tem toda a história recente dos vídeos, VHS, hi8, betacam, minidv, e no final eu não quis nem filmar a entrevista de 2006 em HDV porque falei “bom...”.
Pergunta: Você falou da memória indígena, falou da memória pra gente e pra eles. E, falando um pouco de tecnologia, a gente ultimamente tem usado a tecnologia pra ser a extensão da memória da gente, a gente não precisa guardar tudo na cabeça. Bota tudo na tecnologia, no HD, ou filma, e aí lida com o mais importante, que é a memória de infância, o cheiro do pai, o cheiro da mãe. Essa memória do HD não importa muito. Eu queria saber como foi sua primeira experiência em mostrar uma tecnologia para um índio, de ele perceber que aquilo significava algum registro de memória, e se eles tinham as tecnologias deles de registro de memória que são diferentes da nossas. Sua primeira experiência de perceber o entendimento deles quanto a isso.
VC: Bom, são povos de cultural oral, né. A memória se perpetua pela arte da narrativa, do discurso, da contação. A questão da memória pra eles é imediata, na hora que eu apresentei o vídeo, eles já tinham visto televisão na cidade e tal, mas era quase um objeto externo, um outro que estava ali. Primeiro momento que os índios descobrem que eles podem estar ali na televisãozinha através da câmera, bate na hora 'putz, se eu tivesse tido isso quando eu era jovem, hoje eu teria as imagens do meu avô'. A descoberta já é uma saudade da memória que... 'eu poderia mostrar meu avô pros meus netos'. É a primeira exclamação dentro dessa possibilidade da imagem, como se tivesse chegado tarde. E aí, bom, a experiência fundamental de 86, que tá citada no começo de “Corumbiara”, é justamente esse entusiasmo com isso, 'porra, a gente pode tá na telinha'. Então duas coisas: a disputa política interna pra saber quem é que vai puxar, quem vai tá na telinha, quem é que vai falar, quem é que vai dizer o quê, né. E a questão da memória, que é 'poxa, mas a gente...', o jogo do espelho, o choque, a outra imagem que a gente faz de si e, de repente, a imagem concreta ali na tela, sabe? Acho que tem um choque de expectativa 'porra, sou eu'. E nesse jogo de espelho há um ajuste entre aquilo que só vê na tela e aquilo que eles gostariam de 'porra, mas eu gostaria de aparecer mais bonitinho, mais índio, mais...'. E daí gerando um movimento de memória, de revivência. Não a memória do HD, isso é quase uma ficção, 'ah, vou guardar no HD pros meus netos', isso é um discurso, mas o que acontece na prática, quando você detona um processo desse, é a revivência: reviver pra filmar. E esse processo é até mais importante que o filme, quer dizer, o filme ganha outras dimensões porque ele ganha outros significados e alcança outros públicos depois. E, principalmente no começo do processo, pra gente o que era mais importante era essa catarse que essa ferramenta podia provocar nessas comunidades, essa reflexão. Quando você se vê, você não gosta do que vê, se projetou mudado, 'tô muito mudado”'. Vou produzir um pouco pra chegar em como eu gostaria que me vissem, né.
Pergunta: Eles têm acesso a internet, à conexão?
VC: Olha, isso foi um belo sonho do [projeto] Cultura Viva que não se concretizou. Pras áreas isoladas dos índios, um acesso a internet seria fantástico. E isso aconteceu em muitos poucos lugares. Era uma promessa que não se concretizou. Era quase... você tá a dez dias de barco, uma internet via satélite, um skype, você ter um telefone, você pode deixar de fazer trinta dias de barco pra ir num lugar e voltar. Você vê, a famosa democratização da banda larga tá difícil. Mas seria fundamental.
Pergunta: Vocês tem notícias desse grupo - [o filme] foi em 2006 - você sabe se esse índio conseguiu sair de lá, se foram contatados por outra equipe.
VC: Não, tá tudo do mesmo jeito. Morreram alguns, né. A velha morreu, o flautista também tá bem mal, enfim, mas tá tudo na mesma. E o homem do buraco tá escondido.
Pergunta: Eu queria que tu falasse um pouco sobre essa questão alteridade, o que é que tu aprendeu em relação isso? Porque às vezes a gente acha que sabe o que é bom pro outro, mas será que eles consideram que aquilo é bom pra eles... No caso da tua experiência com eles, como foi que tu percebeu [esse processo]?
VC: Alteridade é uma coisa quase que insuperável e sempre tem que tá revisando e aprendendo mais. É muito difícil, eu acho que... Um pouco na linha de “Corumbiara”, eu tô trabalhando num filme agora, também de um grupo que eu acompanho há quinze anos, agora mais - fiquei quinze anos sem ir e voltei agora e comecei a fazer um filme - um grupo com o qual eu trabalhei muito, eu e minha primeira mulher, a gente processou grandes companhias. Marabá é o eixo nervoso de todos os projetos de desenvolvimento da Amazônia: Tucuruí, Carajás, Transamazônica, e os índios ficaram milionários de tanto receber indenização. Na época eu me lembro que a discussão da igreja que fazia o convencimento, conscientização, mas achava que não deviam envolver dinheiro e tal, e a gente era da linha que falou 'ó, é melhor índio rico que índio pobre. Se eles tão sendo desapropriados, tão perdendo seus recursos naturais...'. Quinze anos depois eu volto lá e vejo que foi um desastre. Teria sido melhor... quer dizer, hoje em dia se confrontar com as utopias que a gente tinha quando era jovem e militava no indigenismo e procurava fazer o que seria bom pro índio. Então a gente [se questiona] o que é que pode ser um processo, um processo histórico? Ele é feito de tantos componentes, e principalmente grupos pequenos, uma personalidade marcante pode fazer história. Conduzir um grupo pra cá ou pra lá, a sucessão de gerações. Então essa questão da alteridade é um eterno desafio e um desafio de uma coisa que também não é estática, que tá aí em permanente formação. O que essa nova geração de índios que tão no facebook, que tão ingressando nesse, de alguma maneira até muito ávida. Já foram reis do orkut, essa conexão com esse outro mundo, cada vez mais intenso. O que essa geração pensa, o que é bom pra eles, o que eles querem, quais são seus dilemas também. Então a gente tá permanentemente tendo que reavaliar e repensar, não é fácil entender o outro, né, realmente não é. Não sei se eu respondi.
Pergunta: Fala mais desse último índio, desse que tá quase que escondido [o índio do buraco]. No filme você fala que se sentiu mal, que teve pesadelo. Como é que é assim, você se sente invadindo? Como é que é tá no espaço do outro?
VC: Você, pela reação dele, pelo histórico todo dele, você fica procurando reconstituir quantas experiências negativas o cara já [passou]... enfim, qual é o tamanho do trauma do cara? E, em tese, hoje a política da Funai em relação aos índios isolados é não fazer o contato mas proteger a área. Que é legal, mas fica protelando uma coisa que vai acontecer mais cedo ou mais tarde. No caso extremo desse cara, ele tá em propriedades, ele tá correndo risco de vida a todo momento, ele tá dentro de propriedades privadas. Que também foram dadas ilegalmente, os grandes fazendeiros, todo esse processo de loteamento foi ilegal, omitiram a presença dos índios. Os índios foram eclipsados, só que vinte anos mais tarde estoura a bomba. E o dilema meu era esse, quer dizer, ao mesmo tempo ficar (…) ele não quer o contato e ficar forçando pra conseguir a imagem, que é a condição dele ter apoio judicial, provar a existência. É um pouco esse dilema. Depois que nós fizemos essa imagem, a gente decidiu que não se faria mais tentativas de aproximação... [Decidimos] ficar monitorando a zona. Tinha impasses jurídicos também, a interdição era sempre provisória e não sei quê, mas que a postura a seguir é essa. Depois, o cara que é o indigenista, que formulou essa política da proteção dos índios isolados, ele mesmo continuou tentando forçar um contato, que é o Sidnei Consuelo. E aí ele mandou o filho dele, e o índio flechou mesmo o cara, dessa vez ele acertou. Atravessou o pescoço do cara, quase não sai vivo de lá. Aí eles desistiram de novo. É isso. E "Corumbiara" deixou o fazendeiro bastante irritado, é evidente. E quando eu voltei lá em 2009, pelo [programa da TV Globo] Profissão Repórter, eu encontrei com esse fazendeiro. O filho [dele] queria bater em mim. Eles moram em Campinas, o [festival de documentário] “É tudo verdade” passou em Campinas, eles viram “Corumbiara”, eles falaram 'vamo ver'. E aí quando eu me identifiquei, 'o senhor não lembra de mim...', 'ah, você é o filho da puta'...
Pergunta: Noel Nutels, o indigenista, dizia assim: o problema não é ver na televisão ou no cinema, o problema é ter índio na civilização. Partindo do Noel, eu creio que há uma linha muito tênue nesse sentido. Até que ponto de influência da nossa... se a gente pode partir, por exemplo, pra uma assistência médica, uma assistência do governo... Assim, de que forma você vê essa afirmação do Noel?
VC: 'O problema não é índio na televisão...?'. Bom, o problema é o confronto das civilizações na história da humanidade, né. O Juruna dizia isso, também. À sua maneira. Não existe o problema do índio, existe o problema do branco. Não sei se você sabe quem é o Mário Juruna. É um xavante que ficou famoso, é o único deputado federal que o Brasil...
Pergunta: O que aconteceu com o Juruna?
VC: Ele morreu. Morreu triste, abandonado e muito doente. Ele entrou na lógica da política nacional, pegou uma grana do Maluf e foi desmoralizado. Mas é um pouco o índio que inventou essa... que abrasileirou o famoso gravador do Juruna. Ele ia pros embates com os funcionários da Funai, do Ministério, e gravava. Depois levava pra imprensa e dizia 'olha, ele prometeu isso...' e ficou conhecido, aí que ele ficou famoso, através desse gravador, gravador Juruna. Acabou se elegendo deputado federal pelo PDT. Fazia um pouco parte do projeto da cultura do Darcy Ribeiro e do Brizola. Enfim, todos aqueles deputados que foram eleitos no Rio de Janeiro pelo PDT.
Pergunta: Não sou cineasta, não sou da área de arte, sou biólogo. Mas tenho uma veia de antropólogo. Você falou do Sidnei, né?! Mas eu fiquei meio decepcionado quando o vi entrevistado no [programa da TV Cultura] “Roda Viva” porque achei ele tão pouco comunicativo, ele se expressa tão pobremente. A bandeira dele a princípio seria do lado meio utópico. Mas você disse que ele cedeu a pressões e passou a defender esse contato. Como foi esse momento, você acha que isso é uma fraqueza, que o antropólogo incorre sob pressão ou ele virou a casaca, como se pode definir?
VC: Não, na concepção dele do que era bom pro outro [ele pensava] 'não, tudo bem, no caso de um grupo grande'. Bom, mas um só filha da puta vai ficar me criando problema. E nesse caso ele cometeu um erro no processo lá atrás. E ele sempre ficou, em relação a gente, com a sensação de ter o rabo preso, 'pô, esses filhos da puta vão me denunciar'. Porque o fazendeiro naquele embate apresenta o relatório do Sidnei pra sustentar a tese dele de que não tinha índio. Então sempre foi uma situação meio incômoda pra ele. Mas todo mundo comete erros. Essa história atravessou.
Pergunta: Uma coisa que você falou no filme, que tá lá na matéria do 'Fantástico', é sobre essa questão do silêncio da imprensa, que é uma coisa que a gente tá o tempo todo conversando a respeito de diversos grupos sociais, não só dos índios, como também dos pobres, por exemplo. E aí me parece que essa situação não mudou muito. Essa visibilidade, essa questão da visibilidade do indígena. Então queria saber de você: qual você acha que tem sido a contribuição do 'Vídeo nas Aldeias' em relação a essa questão da visibilidade. No que o Vídeo nas Aldeias tem transformado um pouco [essa questão]? Porque me parece que ele é um projeto que se coloca justamente nessa perspectiva de militância, chamar atenção pra cultura do indígena e valorizá-la.
VC: É, a gente tá nessa perspectiva e tem atacado em várias áreas. Progressivamente, quer dizer, a produção dos índios vai amadurecendo e vai também marcando presença no cenário audiovisual brasileiro. Teve um programa na TV Cultura, no horário nobre, apresentado pelo Marcos Palmeira, que durante dois anos e meio, apresentou mais de quarenta filmes do Vídeos Nas Aldeias, e reprisou. Em 2000 eu fiz uma série que chama “Índios no Brasil”, pra TV Escola. Infelizmente, a gente vive de avanços e retrocessos, né. Depois entrou o PSDB na TV Cultura, cortou o programa. Que dava (…) a gente sentia, até lá no Vídeo nas Aldeias, os índios comentavam muito com a gente o grau de visibilidade que a televisão dá, principalmente quando é um programa apresentado por um global e num horário nobre, era seis horas da tarde num domingo. Um índio entra no táxi 'pô, você é índio, eu vejo o programa'. O vizinho, o vizinho da aldeia... E começa, descobre, de repente, o vizinho: 'pô, vocês são aqueles, nunca percebi, nunca tive essa intimidade'. Uma outra área importante, que a gente tá um pouco engatinhando nisso, é aquele decreto 2008, que muito devagar tá começando a ser implantado, que é o ensino da temática das culturas afrodescendentes e das culturas indígenas de uma maneira transversal no ensino público brasileiro, tanto fundamental como médio. Então em 2010, a gente ofereceu 60.000 filmes pra rede de escolas, escreveu um guia do professor, pra ensino médio, eram kits de 20 filmes, a gente escreveu pra 3 mil escolas. Mas a gente ofereceu durante um mês esse material, tínhamos 3 mil kits, recebemos 6 mil pedidos, suspendeu a oferta em um mês e já fazem três anos, até hoje não se repetem pedidos. Mas é fundamental essa decisão, ousada porém quase irresponsável, que depende de um grande investimento se tornar uma coisa legal e pra não sair um tiro pela culatra, a gente ficar reproduzindo clichês e preconceitos em larga escala junto aos estudantes, já que os professores não foram formados, informados, né, sobre o assunto, assim como os jornalistas não tem preparo pra tratar do tema. E agora a gente tá executando um projeto da UNESCO, fazendo uma compilação de filmes pra criança, a gente tá chegando lá na raiz, como se entendesse que, quanto mais cedo as crianças puderem ter um contato com essa diversidade, tanto mais chance a gente vai ter de criar novas gerações mais curiosas, menos intolerantes. Porque essa questão do índio é uma coisa que não se sabe exatamente como... Você pega uma criança de três anos, já tem um negócio com os índios, um medo, sabe como é que é?! Então a gente transmite isso, ene momentos, de repente aflora na criança. Então a gente tá atuando nessas várias áreas e curtindo esse negócio das crianças. A gente tem vários títulos que são sucessos, que é a vídeo-carta das crianças [Das crianças Ikpeng para o mundo], que são sucessos mundiais... Enfim, o cinema como... principalmente um cinema que pode trazer a realidade indígena de uma maneira extremamente intimista, honesta, no sentido de não ser uma imagem maniqueísta, de trazer toda [complexidade], cada vez mais... O mundo indígena também é cheio de contradições, não é o bom selvagem que pintaram ou que a gente imagina. Enfim, são seres humanos como a gente. [O objetivo é] trazer uma empatia pra essa realidade.
Pergunta: Você fala no começo do filme, o Vídeo nas Aldeias começa com a proposta de você filmar os índios e depois ele faz um movimento que é de ensinar os índios a filmar e eles próprios constituírem imagens sobre si mesmos. Na sua opinião, o que muda do retrato que você faz dos índios e do retrato que os próprios índios fazem de sua cultura?
VC: Acho que muda tudo. Pra quem, como documentarista, tinha o desafio de retratar a realidade indígena, na verdade, eu começo a fazer documentário no sentido de retratar o processo, ou o vídeo-processo, porque tudo é instrumento. Eu precisava convencer fundações, doadores, patrocinadores – na época nem tinha esse negócio de patrocinador – da importância desse processo. Então toda a série de documentário que fiz na primeira leva são filmes que retratam como cada povo reage, as dinâmicas que isso gera, as reflexões que isso gera.

VC: Ah, os dois primeiros não era eu narrando, era o famoso Voz Off (sic) [voz exterior à cena que comenta os acontecimentos], né. No terceiro, eu já começo uma parceria com alguém que falava muito bem tupi e aí já saí dessa, é dar voz mesmo [aos índios]. Mas você precisa ter ferramentas pra (…) são 180 línguas diferentes faladas no Brasil, eu gaguejo três ou quatro, então você tem que superar esse negócio da língua. Ou você tem alguém que fala... E hoje ficou cada vez mais fácil porque as novas gerações falam português e são capazes de estar traduzindo as coisas pra gente, entender inclusive o que tá sendo dito, o que tá sendo filmado. E aí, continuando, também são filmes sobre vídeos-processos, são ideias que você materializa em filmes. O cinema que a gente começou a experimentar com os índios é um cinema mais intuitivo, é o cinema possível ali no momento a alguém que tá pegando a câmera pela primeira vez. Então é mais um cinema de observação, que vai descrever o cotidiano. Mas ali, deles com eles, portanto sem barreira de língua e com toda a intimidade – no geral são parentes, tio, os personagens – e isso revela um mundo ao qual eu jamais teria acesso, que eu jamais poderia documentar da forma que eles podem documentar, então a diferença é um outro olhar (…) muito mais rico, muito mais interessante daquilo que eu seria capaz de produzir, né. E aí nesse processo às vezes a pessoa diz 'poxa, você não tá mais fazendo filme, você não se sente frustrado?' Não, eu me sinto muito mais realizado em [ajudar a] fazer alguma coisa que só eles poderiam fazer mas depende de eles terem uma oportunidade. E nesse processo justamente o que é fantástico é descobrir que em qualquer lugar tem um talento pra ser revelado, pra ter a oportunidade, pra ser revelado. Como é um processo de formação continuada, todos os grupos com os quais a gente trabalha, a gente continua trabalhando, há um processo de maturação. Eu diria que o cineasta vai sendo formado e começa ali, num segundo momento, terceiro momento, a formatar ideias, projetos, temas. Sai daquele filme do cotidiano, da festa ou do que seja, enfim, mais calcado num estilo cinema direto e aí vão surgindo filmes mais complexos. Agora, tem filmes produzidos de uma primeira oficina, de um mês, dois meses com a montagem, [que] são absolutamente maravilhosos. Então, do zero você pode, de repente, sair com um produto surpreendente. E foi isso que aconteceu. Toda a primeira leva, filmes de oficina, que são a vídeo-carta, que é... [São] maravilhosos. É isso.
Pergunta: Você consegue identificar marcas que são parecidas, uma linha que que tenha uma identidade deles? como você pode identificar uma identidade da imagem do cinema argentino, cinema brasileiro?
VC: Eu acho que os filmes do Vídeo nas Aldeias têm uma marca, porque é muito auto-referenciado. Eles querem ver filmes de outros povos e, às vezes, eles começam a citar os filmes que eles já viram e tal. Então tem uma retroalimentação de estilo, de recurso de linguagem. Agora eles são muito diferentes entre eles, são povos e culturas muito diferenciadas. Interesses com mundos simbólicos completamente diversos, com essa noção de espaço privado e espaço público muito diferenciada. O que dá uma marca por povos, vamos dizer. Tem povos que são muito exibidos, que as coisas, enfim, que se passam muito no coletivo, e aí é isso que é legal, que é bonito, isso que se deve filmar (...) quando você quer entrar na intimidade, 'isso aí já não é bom...'. O xamanismo, pra alguns povos é um tema que pode ser filmado, pra outros já é uma área de conhecimento reservado. Então é um mundo de temas e de maneiras de abordar muito diferenciado, mas o estilo cinema direto, quer dizer, é uma coisa que é comum, é a escola um pouco que a gente [passa] (...) Acho que cada escola tende a assumir (…) e foi o método que a gente foi maturando e que foi também bastante (…) que nasce de inspiração de uma outra escola de cinema que foi fundada pelo Jean Rouch em Paris, que são os Ateliers Varan, né. Então tem essa linha.
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