segunda-feira, 21 de maio de 2012

Pela continuação do mundo (com o cinema)


Aconteceu nos États générauz du documentaire, de Lussas, há quinze anos. Praticantes do cinema documentário, nós nos reuníamos para refletir (efetivamente) sobre nossa prática. Propus uma fórmula que resumia nossa experiência: as maneiras de fazer são formas de pensamento. Essa afirmação podia valer para todas as práticas, especialmente para as artísticas: prática e teoria estão estreitamente ligadas no gesto do artista, saiba ele ou não, a primeira esconda a segunda ou não. Mas no caso do cinema, essa ligação teoria/prática me parece ainda mais essencial, na medida em que, de alguma forma, opera diante de nossos olhos.
Fato único na história das artes e das culturas: somos, por apenas algumas gerações, quase contemporâneos do cinema. Isso quer dizer que estamos engajados na transmissão direta de sua história, partes integrantes de seu nascimento e de seu crescimento em potência, cúmplices também de sua perda de influência, agentes do triunfo paralelo da televisão. O devir-cinema do mundo não se fez sem nós. Isso quer dizer que o lugar do espectador, leitmotiv desses textos, é um lugar estratégico, ligado às relações de força em jogo nas sociedades capitalistas, um lugar político.
Mas o que aconteceu nesses quinze anos – e não é à toa que o encontro de Lussas se realiza – é que nos tornamos ainda mais espectadores: o espetáculo está em todos os lugares, desde as telas grandes e pequenas até as mise-en-scenes sociais e midiáticas. Melhor (ou pior): somos cada vez mais frequentemente levados a ser nós mesmos agenciadores ou propagadores de imagens e sons (cãmeras mini-DV, telefones celulares, câmeras de vigilância, webcam, youtube etc.). Eis que nos tornamos Mabuse sujeitos de outros Mabuse. Corpos e espíritos permanentemente mobilizados pelas imagens, permanentemente expostos à nova mania geral das filmagens – sintoma, mais que remédio, de uma angústia contagiosa. A generalização do espetáculo não faz de nós apenas espectadores, mas atores, personagens, realizadores, autores, mutantes. Responsabilidades múltiplas. Necessidade, se não quisermos ser suas vítimas consentidas, de pensar o que está em jogo nessas torrentes de imagens e de sons que recobrem o mundo como uma nuvem de fantasmas.
Dos Inuits aos Kanaks, passando pela China, Coréia, Amazônia ou Mali, não há qualquer povo, nação ou cultura que não tenha se entregado ao documentário. A generalização dessas experiências certamente atesta o desenvolvimento do espetáculo. Mas ela é também, mais do que tudo, sinal de que oposições sublevam-se em toda parte contra a estandardização e a uniformização que as formas dominantes do espetáculo impõem.
Nossa época é a das mídias de massa, propriedades de grandes grupos audiovisuais, a serviço unicamente das lógicas de mercado. É justo e bom opor-lhes outras maneiras de fazer, de filmar, de olhar, de escutar. Mudar de lógica é mudar de prática. Os espectadores são, antes de tudo, cidadãos, homens e mulheres responsáveis, que não podem ser tratados como eternas crianças. Não estamos aqui apenas para aplaudir e consumir o concerto mundial das midias: queremos compreender o que as imagens e os sons fazem de nós, individualmente e coletivamente. As questões de forma, técnica, estilo são questões de sentido. Há uma implicação política – direta ou indireta – na escolha dos meios e das modalidades de expressão.
Desde as guerras dos certificados de propriedade, no limiar do século XX, sabemos que a história do cinema é um campo de batalha. Com a televisão, essa batalha se tornou global. Uma luta feroz opõe duas concepções de espectador – ou seja, duas concepções sobre o devir da humanidade, se o espetáculo for efetivamente aquilo que define cada vez mais o comum social. A primeira dessas concepções quer a alienação e a submissão do espectador, pela dependência do divertimento, pela fragilização das consciências e pelo controle das subjetividades; a outra postula a promessa de maior liberdade e maior responsabilidade dos sujeitos-espectadores, pela intensificação das experiências subjetivas (o encontro artístico como crise) e pelo desenvolvimento de uma consciência crítica (sobre as condições, por exemplo, de fabricação e distribuição dos espetáculos).

(...)

Trecho inicial do prefácio à edição brasileira do livro "Ver e poder", de Jean-Louis Comolli.

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