Aconteceu
nos États générauz du documentaire, de Lussas, há quinze
anos. Praticantes do cinema documentário, nós nos reuníamos para
refletir (efetivamente) sobre nossa prática. Propus uma fórmula que
resumia nossa experiência: as maneiras de fazer são formas de
pensamento. Essa afirmação
podia valer para todas as práticas, especialmente para as
artísticas: prática e teoria estão estreitamente ligadas no gesto
do artista, saiba ele ou não, a primeira esconda a segunda ou não.
Mas no caso do cinema, essa ligação teoria/prática me parece ainda
mais essencial, na medida em que, de alguma forma, opera diante de
nossos olhos.
Fato
único na história das artes e das culturas: somos, por apenas
algumas gerações, quase contemporâneos do cinema. Isso quer dizer
que estamos engajados na transmissão direta de sua história, partes
integrantes de seu nascimento e de seu crescimento em potência,
cúmplices também de sua perda de influência, agentes do triunfo
paralelo da televisão. O devir-cinema do mundo não se fez sem nós.
Isso quer dizer que o lugar do espectador, leitmotiv
desses textos, é um lugar estratégico, ligado às relações de
força em jogo nas sociedades capitalistas, um lugar político.
Mas
o que aconteceu nesses quinze anos – e não é à toa que o
encontro de Lussas se realiza – é que nos tornamos ainda
mais espectadores: o espetáculo
está em todos os lugares, desde as telas grandes e pequenas até as
mise-en-scenes sociais e midiáticas. Melhor (ou pior): somos cada
vez mais frequentemente levados a ser nós mesmos agenciadores ou
propagadores de imagens e sons (cãmeras mini-DV, telefones
celulares, câmeras de vigilância, webcam, youtube etc.). Eis que
nos tornamos Mabuse
sujeitos de outros Mabuse. Corpos
e espíritos permanentemente mobilizados pelas imagens,
permanentemente expostos à nova mania geral das filmagens –
sintoma, mais que remédio, de uma angústia contagiosa. A
generalização do espetáculo não faz de nós apenas espectadores,
mas atores, personagens, realizadores, autores, mutantes.
Responsabilidades múltiplas. Necessidade, se não quisermos ser suas
vítimas consentidas, de pensar o que está em jogo nessas torrentes
de imagens e de sons que recobrem o mundo como uma nuvem de
fantasmas.
Dos
Inuits aos Kanaks, passando pela China, Coréia, Amazônia ou Mali,
não há qualquer povo, nação ou cultura que não tenha se
entregado ao documentário. A generalização dessas experiências
certamente atesta o desenvolvimento do espetáculo. Mas ela é
também, mais do que tudo, sinal de que oposições sublevam-se em
toda parte contra a estandardização e a uniformização que as
formas dominantes do espetáculo impõem.
Nossa
época é a das mídias de massa, propriedades de grandes grupos
audiovisuais, a serviço unicamente das lógicas de mercado. É justo
e bom opor-lhes outras maneiras de fazer, de filmar, de olhar, de
escutar. Mudar de lógica é mudar de prática. Os espectadores são,
antes de tudo, cidadãos, homens e mulheres responsáveis, que não
podem ser tratados como eternas crianças. Não estamos aqui apenas
para aplaudir e consumir o concerto mundial das midias: queremos
compreender o que as imagens e os sons fazem de nós, individualmente e
coletivamente. As questões de forma, técnica, estilo são questões
de sentido. Há uma implicação política – direta ou indireta –
na escolha dos meios e das modalidades de expressão.
Desde
as guerras dos certificados de propriedade, no limiar do século XX,
sabemos que a história do cinema é um campo de batalha. Com a
televisão, essa batalha se tornou global. Uma luta feroz opõe duas
concepções de espectador – ou seja, duas concepções sobre o
devir da humanidade, se o espetáculo for efetivamente aquilo que
define cada vez mais o comum social. A
primeira dessas concepções quer a alienação e a submissão do
espectador, pela dependência do divertimento, pela fragilização
das consciências e pelo controle das subjetividades; a outra postula
a promessa de maior liberdade e maior responsabilidade dos
sujeitos-espectadores, pela intensificação das experiências
subjetivas (o encontro artístico como crise) e pelo desenvolvimento
de uma consciência crítica (sobre as condições, por exemplo, de
fabricação e distribuição dos espetáculos).
(...)
Trecho inicial do prefácio à edição brasileira do livro "Ver e poder", de Jean-Louis Comolli.
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