sexta-feira, 29 de junho de 2012

Transcrição da segunda parte do debate com Vincent Carelli a propósito da exibição de “Corumbiara” no CineCoque de 4 de maio de 2012


A primeira parte do debate aqui.

Pergunta: Se duas tribos são contatadas por dois diferentes grupos de cinema, a gente pode dizer que a diferença não está tanto entre as tribos mas naquilo que foi semeado nelas?

Vincent Carelli: Bom, sem dúvida. É uma marca, é um trabalho colaborativo antes de mais nada. Então, os frutos desse trabalho tem a ver com ambas as partes, tem um input aí, input importante de ambas as partes, índios e não índios. Cada input diferente dá uma química diferenciada. A maneira de conduzir o processo pode levar.

Pergunta: Porque eles não tinham o conceito minimamente teórico do que era filmar, então eles não podiam ter um estilo próprio antes de conhecer a câmera…

VC: Não, claro. E nada é cerebral, sabe?! É uma coisa mais intuitiva.

Pergunta: Esses vídeos feitos pras escolas tão disponíveis em algum lugar?

VC: Olha, tem uma coleção chamada “Cineastas indígenas” que tá na Livraria Cultura. Tem 7 números, por povo. Esse (mostra um DVD) é o último que saiu sobre os guaranis do Rio Grande do Sul. É uma coleção que cada DVD vem com quatro filmes. Esse, no caso, vem com três. São dois filmes de autoria indígena, um filme histórico sobre o povo e um making off, meio que pra entender qual foi o processo de produção e qual é o interesse deles em filmar e produzir filmes. Como é que acontece o processo em cada povo. E vem também um folheto, uns textos. Essa é a coleção que a gente tá incrementando com o melhor da produção desses últimos 12 anos de formação.

Pergunta: Nesse processo das oficinas, com cada etnia é diferente. As oficinas tem uma certa unidade de pensamento, desse cinema direto, intuitivo, ou com cada etnia você tem que reagir de uma determinada maneira?

VC: É, acho que o segredo é você tá aberto e antenado. Qual é o desejo, qual é o tema, o que tá acontecendo, enfim, e por onde as coisas vão. Tem índios que gostam de fazer ficção. Tem uns que são mais políticos. Aí é que tá a grande magia dessa alquimia, é perceber o outro e entender o desejo e o potencial. Então, é por isso que você entra na oficina. Você não tem a obrigação de produzir um filme porque isso já gera um estresse, tanto em quem tá dando a oficina quanto nos alunos. Foda-se, se não tiver filme, não tem filme, não tem problema. Isso aí já é fundamental. Quem entra numa oficina de uma semana e acha que vai produzir um curta, editar e finalizar, não vai ser assim. Um filme pode levar 20 anos pra fazer ou pode levar meia hora, sei lá, mas não pode ser as coisas pré-arrumadas. Então tudo depende disso. De repente você começa um filme e vai desenvolvendo numa próxima oficina. Tem filmes que levaram duas, três oficinas pra ficarem prontos. Tem uns que saíram do forno ali na hora. O que não pode ser é – aí é que tá o teu ponto de vista – é ser condescendente. “O que fizer tá bom”, “ah é índio, pô”, ou “é da periferia”, sabe?! E tudo bem, se faz registro, não precisa fazer um filme. Fazer um filme tem que ser uma coisa capaz de sustentar uma platéia, emocionar um público.

Pergunta: A gente observou que com a presença da câmera, eles podem mudar o comportamento. No início, um grupo voltou a fazer um ritual que não fazia há décadas, meio que aproveitando a câmera pra poder registrar. E também teve o caso do índio do buraco, que ficou muito agressivo e você imagina que por conta dessa câmera. Você se preocupou com essa naturalização quando foi filmar? Porque a imagem que a gente tem deles é a imagem que vai se perpetuar, como naquele outro caso que o grupo do fazendeiro tirou foto com índios com roupas de branco e isso ficou perpetuado. Enfim, você se preocupou em tornar o comportamento deles natural, pra não causar um falso estereótipo?

VC: Olha, a presença de uma câmera muda, é a coisa mais universal que tem. Não é só índio que muda de comportamento quando tem uma câmera. Principalmente se tiver consciência do que é que aquela câmera tá fazendo. E ver as imagens e tal, é uma coisa que o vídeo possibilitou. E o cinema, se puder chegar num lugar desse, passa o ano filmando sem que ninguém saiba o que você tá fazendo, né. Tem um filme clássico do cinema que é “Crônica de um verão”, do Edgar Morin e do Jean Rouch, que é sobre isso: como as pessoas mudam, como uma câmera numa cena muda o comportamento das pessoas. É a coisa mais universal que tem. E eu acho que a gente joga exatamente com isso, é isso que é estimulante criativamente. A partir do momento em que o cineasta chega pra pessoa e estabelece um contrato, “pô, eu queria fazer um filme com você, posso filmar e tal?”; a partir do momento em que se estabelece esse trato, a pessoa que vai ser filmada começa a construir um personagem e – o que é fantástico, principalmente nesses filmes de personagens no cotidiano – o input dessas pessoas ao criarem seus personagens é incrível. Quer dizer, eu costumo dizer que eles são tão autores como os cinegrafistas que tão filmando eles. Porque ele propõe coisas, atividades, cria diálogos, desenvolve conversas. É isso justamente que é a magia do cinema, vamos dizer. A partir do momento que você liga a câmera, começa a acontecer coisas que não aconteceria se essa câmera não tivesse ali. E isso que você trabalha, né. É isso que gera tudo. O imprevisto acidental, o imaginado, o criado. Você pode até, em outros filmes, criar situações: “Se eu juntar fulaninho com sicraninho em tais circunstâncias, eu vou ter um embate que pode ser interessante pra revelar isso e aquilo”. Então eu acho que o cinema nasce a partir desse momento em que tem uma câmera que interfere numa cena e muda o comportamento das pessoas. E esse é o teu material pra filmar.

Pergunta: Em “Corumbiara” eles [os índios] tinham noção do fato de estarem sendo filmados, vocês mostravam a filmagem, o material a eles?

VC: Em "Corumbiara” a gente mostrava. Inclusive, durante todo o processo, quando descobre un cara que fala a língua, vai revisando o material com eles e traduzindo. Um caso decisivo, muito particular, muito estranho, muito atípico – no sentido de que eles foram contatados em 95, já se passaram mais de quinze anos – são pessoas tão traumatizadas que é como se o contato não tivesse acontecido, porque eles não aprenderam a falar português, eles não se interessaram. O índio é um ser de uma curiosidade devoradora desse mundo de fora, mas eles continuaram vivendo ali numa bolha, que é uma coisa muito atípica. Mas é que eles estão numa situação tão fragilizada – na verdade eles estão condenados a morte, né, porque eles não podem se reproduzir, são todos parentes, é como se tivessem esperando a morte -, até as imagens, a gente mostrou outros povos pra eles mas eles nunca se interessaram muito e meio que se comportam em relação a câmera quase como se a câmera não existisse. Agora que aconteceu uma epidemia, foram pra o hospital, tiraram radiografia, né... e agora eles entenderem, associaram a radiografia à fotografia, fosse pra curar. Então eles tavam com essa nova loucura, você chegava com a máquina fotográfica e eles diziam 'aqui, aqui ó, aqui tá doendo'. Parecia que era um objeto xamanístico pra passar a dor, sei lá.

Pergunta: Existe alguma relação do uso dos alucinógenos pelos índios com a produção audiovisual deles?

VC: A ayahuasca é chamada no Acre de cinema de caboclo. Mas aí você não precisa de câmera, você fecha as pálpebras...

Pergunta: A ayahuasca é uma coisa tão potente que uma pessoa com a câmera na mão pode alcançar certos níveis de percepção estética muito diferentes.

VC: É, e de repente quando ele assistir, quando ele tiver bom, não vai reconhecer nada do que ele filmou... Os índios hunikui, os chamados kaxinawá, fizeram um filme sobre os cantos do cipó (HuniMeka, os Cantos do Cipó), sobre a ayahuasca, mas essa transposição da alucinação pro cinema ainda não aconteceu.

Pergunta: Você sabe de algum projeto parecido com o "Vídeo nas Aldeias" nos outros países?

VC: No mundo inteiro. E aliás foi encontrando outras pessoas trabalhando em festivais internacionais... (atende o telefone). Onde eu parei? Sim, tem no mundo inteiro. Em 80 começava... na verdade em 86 começavam simultaneamente três projetos que não se conheciam: dois deles no México e na Bolívia foram de inspiração do Ateliers Varan, e eu fui conhecer o Ateliers Varan uma década depois. Mas em 86 começou um projeto similar no Brasil, na Bolívia e no México. Hoje tem em muitos países da América Latina, tem na Índia, na África, nas Américas, no Alasca, enfim, na Índia nativa...

Pergunta: Existem ainda esses projetos?

VC: Sim, tem muitos. Quer dizer, no primeiro mundo, nas minorias do primeiro mundo, que são os países mórbidos, a Finlândia, a Noruega, o sangue, é uma população... Nos Estados Unidos, no Alasca. Os aborígenes da Austrália têm uma rede de televisão. Tem inclusive cota. Nas televisões comerciais, tem que ter uma cota de aborígenes trabalhando, de faxineiro a diretor. Nas minorias de primeiro mundo, quer dizer, as novas gerações têm tido acesso a escolas, faculdades de cinema, então se produz coisas que são distribuídas internacionalmente. Inclusive os Maori da Nova Zelândia, os Inuit ganharam o Cannes há uns anos atrás. E tem o terceiro mundo... hoje não sei, a gente já é primeiro?! Mas tem projetos mais localizados, mais populares, né. Agora essa coisa de acesso a escola de cinema também é uma discussão nos cineastas aborígenes da Austrália, 'porra, agora que a gente tá certo, a gente tá no modelo Hollywood?'. Qual é a consistência da nossa especificidade de linguagem? Há toda uma discussão, uma auto-crítica, um debate rolando entre eles. Em que medida a escola de cinema tá formatando cineastas aborígenes? Que tão replicando um modelo de cinema que se aprende na universidade.

Pergunta: As imagens do [programa] “Fantástico” que você fez teve uma reação agressiva por parte dos fazendeiros. Como você se sente em relação a isso? Culpado? Porque os índios acabaram prejudicados, você tentou ajudar, mas a reação...

VC: É o embate, né?! Na época, advogados, deputados fizeram... foram pra TV globo, foram pro [jornal] Estadão, pressionaram o ministério. Era impossível... Não, não me sinto culpado não. É uma luta, às vezes você perde e às vezes você ganha. Mas eu não sabia que tinha esse índio lá, que o cara ia ver o fantástico e ia lá atirar no cara...

Pergunta: Não foi sua intenção, é uma consequência indireta de uma ação sua que tinha um objetivo completamente diferente.

VC: Mas, por outro lado, se foi demarcado, se a Justiça Federal isolou as áreas, se obrigou o governo a demarcar as áreas, foi graças às imagens. Então foi pra o bem e foi pra o mal. Essas imagens foram fundamentais pra sobrevivência dessas outras pessoas...

Pergunta: Nesse processo todo de “Corumbiara”, você teve medo?

VC: Se eu tive medo? Eu tive quando eu fiz aquele depoimento de câmera escondida da mulher. Ali eu tive bastante medo. Porque o cara, o pistoleiro, ia toda hora no hotel, ameaçava a mulher e dizia 'você falou, você não falou'. Eu ia de noite pra central telefônica, os caras começaram a falar, 'ó, não anda sozinho de noite'. Começou a se criar um clima assim, eu já tava jurado. Esse foi o momento, o ápice: na hora que os fazendeiros sentiram que eu tinha eles e que eu achava e eles achavam que eu tinha eles na minha mão.

Pergunta: E dos índios?

VC: Não, dos índios eu nunca tenho medo. De polícia eu tenho medo, de fazendeiro eu tenho medo, madeireiro também, mas índio não.

Pergunta: O que foi que você aprendeu com eles, até que ponto você se deixou ser tomado por essa experiência com os índios?

VC: Olha, eu acho que a experiência do choque cultural, que é exatamente o que eu vivi, é uma experiência fundamental pra qualquer cidadão do mundo hoje em dia. Nesse mundo que vai ser implodido por quê? Por guerras de religião? Fora outras catástrofes, ambiental, sei lá, o apocalipse anunciado de uma civilização. Se todas as civilizações passadas afundaram em algum momento, por que vocês acham que a nossa não vai colapsar? É claro que, se não cair a ficha, vai colapsar mesmo. Então essa experiência do choque cultural é fundamental pra descoberta do outro, né, e descoberta da riqueza, da profundidade histórica da humanidade, enfim, é uma experiência pra você [se] abrir. O drama é querer achar que o teu segmento social, o teu país, é dono de alguma verdade. Essa é a coisa mais fundamental em todo mundo: se diz 'viajar abre os espíritos'. Até você sai daqui e vai a primeira vez pra Europa, você descobre um novo olhar sobre o teu país. Então esse é que é o processo fundamental.

Pergunta: Você chegou a participar das práticas espirituais dos índios?

VC: Sim, sim, mas eu sou ateu até a raiz do cabelo. Mas eu admiro muito religião como uma criação do espírito humano e de um sentido de um universo cultural. Me interessa nesse sentido, embora eu seja ateu. E essa dimensão da espiritualidade, de sentir, entender e ter consciência de que tua percepção vai até um certo ponto. E exercitar um mundo de enigmas é a coisa da religião, né. Eu já fui curado no xamanismo, acredito que tenha uma eficácia em todo o processo. Os índios sofrem de muitas doenças também, psíquicas inclusive. Então o tratamento xamanístico é extremante eficaz nesse tipo de síndrome, né. Mas não aderi nem ao daimismo nem... adoro tomar um cipó [ayahuasca], mas não vou vestir farda...

Pergunta: Uma vez li um texto falando sobre os povos antigos da América Central e o teórico tava justamente relacionando a ideia que a gente tem de imagem à filosofia desses povos, dizendo que talvez se a gente concebesse a imagem fora da representação, daquilo da imagem ser alguma verdade, fiel a realidade, talvez a gente se aproximasse de algo mais interessante. Então queria saber se existe essa tendência nas imagens que os índios produzem de sair dessa coisa 'vamo mostrar uma verdade aqui'? Se eles introduzem aspectos da simbologia deles, se tem esse caráter de ficção.

VC: Sem dúvida, a mitologia é totalmente transformacionista. No princípio, gente e bicho era tudo igual, falava, entendia. E tinha negócio da perspectiva: 'Quando eu vejo ele, eu vejo um animal, mas eles entre eles são gente'. Então esse universo mitológico deles demanda um estúdio de efeitos especiais no nível do de [George] Lucas, que é uma coisa muito louca. E eles adorariam fazer mais. A gente nunca enveredou por aí. Um pouco a saída seria a animação pra dar vazão ao nível de delírio transformacionista das lendas e da mitologia. Acho que a gente não alcançou esse... espero que nas próximas gerações de cineastas indígenas tenha algum que desenvolva essa veia aí.

Pergunta: Então vocês já fizeram animações também?

VC: Já fizemos pouca, muito pouca coisa. E fizemos um pouco de ficção também. Tens uns que só se interessam por ficção. Como é que é o negócio? Você vem com uma proposta e, de repente, você bate num lugar que não é isso: 'Ah, então cada um escolhe seu personagem, seu cotidiano e tal'. De repente me aparece um aluno que filmou uma lendazinha, um menino que vai atrás de um fantasma  – ele filmou editado! – e mostra o negócio, 'porra, cara, que maravilha, vamo fazer mais!' e não sei quê. Aí o cara vira 'é, pois é, mas eu não tenho tempo, tenho que filmar o cotidiano, personagens, não sei quê'. Aí cai tua ficha, você fala 'porra, o cara tem que fazer ficção! Vai lá, que maravilha!'. Você tem que 'errei, desculpe, vai lá, faz aí'. Esse é o negócio, o desafio total, quer dizer, cada momento o que é que cola, como rola, enfim. Não dá pra entrar em fórmula porque aí acabou tudo. Por exemplo, o vídeo-carta (MARANGMOTXÍNGMOMÏRANG Das crianças Ikpeng para o mundo), que faz um puta sucesso em todo lugar, vários outros grupos tentaram fazer e ficou um negócio super chato, não saiu nem um filme  – graças a deus. E muitas escolas fizeram resposta ao vídeo-carta, mas não tem uma que eu... Então reproduzir fórmula... porque aquilo nasceu de um momento deles, inventaram aquilo e fizeram. Outros grupos quiseram copiar mas não rolou.

Pergunta: Você já fez alguma coisa com os xukurus?

VC: Não, não fiz. A gente trabalhou um pouco com os truká, né. Porque a gente procurou o Centro Luiz Freire e eles indicaram os truká pra gente e tal. Os xukurus, como é mais perto daqui, tem um monte de gente trabalhando. Mas eu não fui nas oficinas [dos truká]. O primeiro trabalho que saiu é um filme que eu até gosto, mas a comunidade rechaçou. Comunidade muito grande, são mais de 5 mil pessoas, tem milhares de cabeças, tem uma tendência, uma liderança, uma orientação política e tal. O filme terminava de uma maneira maravilhosa, um cara meio doido assim dizendo 'antigamente, quem regia esse rio era o São Francisco lá no céu, mas agora...', porque eles tão no ponto de onde saí a transposição, e a oficina aconteceu exatamente no momento em que a transposição tava começando, '... mas agora quem manda nesse rio é o Lula lá em Brasília'. Era genial, pô! Aí os caras 'não, esse cara é um doido, não pode botar um doido desse'. Um cara poeta... E, ao mesmo tempo, tinha uma produtora aqui do Recife, que fez uma série de oficinas lá no xukurus, que chama Cabra Quente, e produziu uma série de vídeos num estilo militante, discursivo, tudo que a gente não faz, não gosta de fazer, entende? Mas que os truká adoraram. Foi o discurso dos 500 anos, um negócio e tal. E o filme mais poético, que tinha uma velha falando sobre a morte e a solidão, enfim, que eram coisas assim de momentos de magia, eles, as lideranças, rechaçaram o filme. Queriam um filme militante-discursivo que os xukurus tavam fazendo.

Pergunta: É porque tem toda a história de criminalização dos xukurus.

VC: É, mas é a criminalização de todos eles, todos eles. Tem assassinato em todos os lugares, repressão em todos os lugares, quer dizer, os índios do Nordeste é um sofrimento só. E agora provavelmente a gente vai fazer um trabalho com os fulni-ô que tão há dois anos pegando no nosso pé e eu fui lá saber se tinha demanda e tinha, era afinado com um coletivo significativo. No caso dos truká era um grupo de jovens que fazia teatro, o problema é que não bateu com as lideranças. Talvez se tivesse sido um trabalho de aproximação e tal. Por exemplo, foi feito o trabalho do Felipe Bandeira lá no Ceará, que ele fez uma coisa - que ele fez nesse caso, né - mas, evidentemente, quando os índios viram o filme - que tem toda uma linguagem mais poética - não gostaram. Mas aí eles foram convidados a várias projeções em Fortaleza e sentiram que o público tava gostando, que tava transmitindo um negócio legal, e eles foram se enxergando no filme e acabaram assumindo o filme. Talvez os truká não tenham tido essa oportunidade. Também se espera uma coisa, depois é outra. E tem muito essa coisa das coisas que já foram incorporadas, daquilo que os brancos não gostam de ver, de como os brancos esperam vê-los. Que é um pouco o drama do Nordeste, que é um pouco obrigado... essa questão da imagem. E, principalmente, o outro é julgado... você não entra no outro, você encaixa pelas aparências, pela imagem, quem é índio, quem não é índio. Então os índios do Nordeste se sentem obrigados a ir na loja da Funai e comprar um cocar de índio caiapó e se travestir de índio, como se ele não tivesse a legitimidade histórica da sua identidade indígena. Espezinhada, massacrada, perdendo língua, perdendo traços culturais, mas a sociedade toda julga, pressiona, condena, e eles tem que reagir, se defender, tem que ir lá comprar um cocar, botar o cocar, falar 'ó, é isso, é assim que vocês me reconhecem como índio? Então tá aqui'. Esse jogo de reconhecimento do outro que cria toda essa dinâmica, tudo em cima da imagem.
Pergunta: Como é que funcionam as oficinas, vocês procuram eles, eles procuravam vocês?

VC: Eles procuram a gente.

Pergunta: Tem ligação com a Funai?

VC: Nenhuma. Muito pelo contrário...

Pergunta inaudível

VC: Eu tava trabalhando com meus amigos da Funai, a equipe era oficial da Funai. Eu tenho grandes amigos na Funai. A questão não é pessoal, é estrutural. Agora, naquele momento, esse diálogo, ela tava muito insegura (uma índia presente em “Corumbiara") sobre quem éramos nós. Fazendeiros? Como situar a gente, né... E a primeira vez que ela consegue falar com o cara - achamos um cara [intérprete] que consegue entendê-la - tem esse diálogo pra poder confirmar 'pô, mas quem são esses caras?!' Tudo isso era muito difícil. Tem uma cena, não me lembro mais, acho que não entrou no filme. Nós recolhemos... todos aqueles objetos que a gente recolheu em 86 no local do crime, a gente guardou. E quando a gente fez os dois contatos, a gente levou esses objetos. O índio sempre perguntava 'vocês vêm de cá?', e apontava o lugar pro massacre. 'Não, a gente vem de cá' [e o intérprete apontava na direção contrária]. Aqueles objetos, eles imediatamente reconheceram, 'isso é da fulana que mataram...'. [Aí] surgiu uma dúvida, e imediatamente perguntaram pro intérprete 'mas afinal, eles vêm de cá [lugar do massacre] ou vêm de cá [direção contrária]?'. Eles falaram 'vêm de cá' [direção contrária]. Mas 'como é que eles têm esses objetos?'. Então, finalmente, tem muitas questões, muitos medos. E naquele diálogo, o velhinho - esse povo dava assistência de remédio e tal - o velhinho tava tranquilizando ela.


terça-feira, 26 de junho de 2012

Transcrição da primeira parte do debate com Vincent Carelli a propósito da exibição de “Corumbiara” no CineCoque de 4 de maio de 2012


 
[o começo do debate não foi gravado]

Vincent Carelli: (...) Eu tive nesse projeto (enciclopédia indígena online), justamente através desse projeto – eu fui o editor fotográfico – comecei a colecionar fotos dos acervos de jornais e museus, viajando e realizando a importância da imagem e da memória dos povos indígenas. E aí que entrei nesse negócio de produzir. Comecei a fazer cinema tinha trinta e poucos anos já.


Pergunta: No que você acredita?

VC: Eu acredito em quê? Bom, eu acho que eu tenho um fascínio pelo mundo indígena, pela diversidade cultural e, ao mesmo tempo, é chocante a invisibilidade e o desconhecimento que esse povos têm. Então é uma questão de prazer de conviver e conhecer e aprender esse mundo infinito. Um universo cultural e uma diversidade. O Brasil talvez seja o país no mundo com a maior diversidade indígena. Enfim, o prazer de conhecer, de conviver e o desafio de construir uma ponte de conhecimento e de respeito entre as corporações indígenas e a sociedade nacional. A todo momento você acompanha, sei lá, essa semana passada, esses quinze últimos dias, quando os pataxós do sul da Bahia ocuparam algumas fazendas, você sente na imprensa televisiva, escrita, que reflete um pouco o ânimo nacional, um asco, “os índios, perturbadores, invasores, impedindo produtores de...”. Enfim, em nenhum momento se faz uma leitura, porque não há interesse, não há profissionalismo na área jornalística suficiente e nem espaço político pra aqueles que queiram fazer isso, ir lá fazer uma pesquisa. Quer dizer, aquilo foi uma reserva reconhecida, demarcada, enfim, tem todo um processo histórico de desapropriação, desalojamento dos índios e tal, quer dizer, não é uma baderna que surgiu do nada. [São] décadas, pra não dizer séculos, de litígio. Mas você assiste na imprensa e, de repente, o supremo dá um ganho de causa pros índios – o que também é surpreendente, né – então eu acho que a gente vive essa dicotomia: uma simpatia pelos índios, porém não muito a sério. Quando é questão de lei, da terra... aí “essa não, pera aí, vamos falar sério!”, então é isso.

Pergunta: Como foi teu trabalho de pré-produção, especificamente no “Corumbiara”? Por que no começo eu ouvi que a equipe era reduzida. Tinha uma equipe por fora, te ajudando, até a achar os lugares, locações?

VC: Não, não teve nenhuma pré-produção, eu nem sabia que ia fazer um filme, na verdade. Nesse caso, quando começou, era uma coisa imediata de produzir um registro de um cenário de um crime que - sabe como é que é mata, mata se regenera, dali alguns meses [não haveria mais nada], alguns anos, então. Durante muito tempo, a ideia do filme esteve presente, né, mas eu fui atrás dos acontecimentos, não foi um negócio planejado. Os índios desapareceram, durante nove anos a gente ficou colhendo pistas, indo atrás, não encontrando nada, sendo barrado, até descobrí-los. Então [foi] meio a reboque, não teve pré-produção. É você na câmera... Naquela época tinha o negócio do repórter abelha: fazia tudo, fazia som, fazia câmera. Primeiro porque [não havia] recurso nenhum.  É a necessidade de fazer, não é nenhum... é uma ferramenta.

Pergunta: A câmera era sua, o equipamento era seu?

VC: Sim, era do projeto, né. Começou em VHS, todos os primeiros trabalhos feitos em VHS, e aí tem toda a história recente dos vídeos, VHS, hi8, betacam, minidv, e no final eu não quis nem filmar a entrevista de 2006 em HDV porque falei “bom...”.

Pergunta: Você falou da memória indígena, falou da memória pra gente e pra eles. E, falando um pouco de tecnologia, a gente ultimamente tem usado a tecnologia pra ser a extensão da memória da gente, a gente não precisa guardar tudo na cabeça. Bota tudo na tecnologia, no HD, ou filma, e aí lida com o mais importante, que é a memória de infância, o cheiro do pai, o cheiro da mãe. Essa memória do HD não importa muito. Eu queria saber como foi sua primeira experiência em mostrar uma tecnologia para um índio, de ele perceber que aquilo significava algum registro de memória, e se eles tinham as tecnologias deles de registro de memória que são diferentes da nossas. Sua primeira experiência de perceber o entendimento deles quanto a isso.

VC: Bom, são povos de cultural oral, né. A memória se perpetua pela arte da narrativa, do discurso, da contação. A questão da memória pra eles é imediata, na hora que eu apresentei o vídeo, eles já tinham visto televisão na cidade e tal, mas era quase um objeto externo, um outro que estava ali. Primeiro momento que os índios descobrem que eles podem estar ali na televisãozinha através da câmera, bate na hora 'putz, se eu tivesse tido isso quando eu era jovem, hoje eu teria as imagens do meu avô'. A descoberta já é uma saudade da memória que... 'eu poderia mostrar meu avô pros meus netos'. É a primeira exclamação dentro dessa possibilidade da imagem, como se tivesse chegado tarde. E aí, bom, a experiência fundamental de 86, que tá citada no começo de “Corumbiara”, é justamente esse entusiasmo com isso, 'porra, a gente pode tá na telinha'. Então duas coisas: a disputa política interna pra saber quem é que vai puxar, quem vai tá na telinha, quem é que vai falar, quem é que vai dizer o quê, né. E a questão da memória, que é 'poxa, mas a gente...', o jogo do espelho, o choque, a outra imagem que a gente faz de si e, de repente, a imagem concreta ali na tela, sabe? Acho que tem um choque de expectativa 'porra, sou eu'. E nesse jogo de espelho há um ajuste entre aquilo que só vê na tela e aquilo que eles gostariam de 'porra, mas eu gostaria de aparecer mais bonitinho, mais índio, mais...'. E daí gerando um movimento de memória, de revivência. Não a memória do HD, isso é quase uma ficção, 'ah, vou guardar no HD pros meus netos', isso é um discurso, mas o que acontece na prática, quando você detona um processo desse, é a revivência: reviver pra filmar. E esse processo é até mais importante que o filme, quer dizer, o filme ganha outras dimensões porque ele ganha outros significados e alcança outros públicos depois. E, principalmente no começo do processo, pra gente o que era mais importante era essa catarse que essa ferramenta podia provocar nessas comunidades, essa reflexão. Quando você se vê, você não gosta do que vê, se projetou mudado, 'tô muito mudado”'. Vou produzir um pouco pra chegar em como eu gostaria que me vissem, né.

Pergunta: Eles têm acesso a internet, à conexão?

VC: Olha, isso foi um belo sonho do [projeto] Cultura Viva que não se concretizou. Pras áreas isoladas dos índios, um acesso a internet seria fantástico. E isso aconteceu em muitos poucos lugares. Era uma promessa que não se concretizou. Era quase... você tá a dez dias de barco, uma internet via satélite, um skype, você ter um telefone, você pode deixar de fazer trinta dias de barco pra ir num lugar e voltar. Você vê, a famosa democratização da banda larga tá difícil. Mas seria fundamental.

Pergunta: Vocês tem notícias desse grupo - [o filme] foi em 2006 - você sabe se esse índio conseguiu sair de lá, se foram contatados por outra equipe.

VC: Não, tá tudo do mesmo jeito. Morreram alguns, né. A velha morreu, o flautista também tá bem mal, enfim, mas tá tudo na mesma. E o homem do buraco tá escondido.

Pergunta: Eu queria que tu falasse um pouco sobre essa questão alteridade, o que é que tu aprendeu em relação isso? Porque às vezes a gente acha que sabe o que é bom pro outro, mas será que eles consideram que aquilo é bom pra eles... No caso da tua experiência com eles, como foi que tu percebeu [esse processo]?

VC: Alteridade é uma coisa quase que insuperável e sempre tem que tá revisando e aprendendo mais. É muito difícil, eu acho que... Um pouco na linha de “Corumbiara”, eu tô trabalhando num filme agora, também de um grupo que eu acompanho há quinze anos, agora mais - fiquei quinze anos sem ir e voltei agora e comecei a fazer um filme - um grupo com o qual eu trabalhei muito, eu e minha primeira mulher, a gente processou grandes companhias. Marabá é o eixo nervoso de todos os projetos de desenvolvimento da Amazônia: Tucuruí, Carajás, Transamazônica, e os índios ficaram milionários de tanto receber indenização. Na época eu me lembro que a discussão da igreja que fazia o convencimento, conscientização, mas achava que não deviam envolver dinheiro e tal, e a gente era da linha que falou 'ó, é melhor índio rico que índio pobre. Se eles tão sendo desapropriados, tão perdendo seus recursos naturais...'. Quinze anos depois eu volto lá e vejo que foi um desastre. Teria sido melhor... quer dizer, hoje em dia se confrontar com as utopias que a gente tinha quando era jovem e militava no indigenismo e procurava fazer o que seria bom pro índio. Então a gente [se questiona] o que é que pode ser um processo, um processo histórico? Ele é feito de tantos componentes, e principalmente grupos pequenos, uma personalidade marcante pode fazer história. Conduzir um grupo pra cá ou pra lá, a sucessão de gerações. Então essa questão da alteridade é um eterno desafio e um desafio de uma coisa que também não é estática, que tá aí em permanente formação. O que essa nova geração de índios que tão no facebook, que tão ingressando nesse, de alguma maneira até muito ávida. Já foram reis do orkut, essa conexão com esse outro mundo, cada vez mais intenso. O que essa geração pensa, o que é bom pra eles, o que eles querem, quais são seus dilemas também. Então a gente tá permanentemente tendo que reavaliar e repensar, não é fácil entender o outro, né, realmente não é. Não sei se eu respondi.

Pergunta: Fala mais desse último índio, desse que tá quase que escondido [o índio do buraco]. No filme você fala que se sentiu mal, que teve pesadelo. Como é que é assim, você se sente invadindo? Como é que é tá no espaço do outro?

VC: Você, pela reação dele, pelo histórico todo dele, você fica procurando reconstituir quantas experiências negativas o cara já [passou]... enfim, qual é o tamanho do trauma do cara? E, em tese, hoje a política da Funai em relação aos índios isolados é não fazer o contato mas proteger a área. Que é legal, mas fica protelando uma coisa que vai acontecer mais cedo ou mais tarde. No caso extremo desse cara, ele tá em propriedades, ele tá correndo risco de vida a todo momento, ele tá dentro de propriedades privadas. Que também foram dadas ilegalmente, os grandes fazendeiros, todo esse processo de loteamento foi ilegal, omitiram a presença dos índios. Os índios foram eclipsados, só que vinte anos mais tarde estoura a bomba. E o dilema meu era esse, quer dizer, ao mesmo tempo ficar (…) ele não quer o contato e ficar forçando pra conseguir a imagem, que é a condição dele ter apoio judicial, provar a existência. É um pouco esse dilema. Depois que nós fizemos essa imagem, a gente decidiu que não se faria mais tentativas de aproximação... [Decidimos] ficar monitorando a zona. Tinha impasses jurídicos também, a interdição era sempre provisória e não sei quê, mas que a postura a seguir é essa. Depois, o cara que é o indigenista, que formulou essa política da proteção dos índios isolados, ele mesmo continuou tentando forçar um contato, que é o Sidnei Consuelo. E aí ele mandou o filho dele, e o índio flechou mesmo o cara, dessa vez ele acertou. Atravessou o pescoço do cara, quase não sai vivo de lá. Aí eles desistiram de novo. É isso. E "Corumbiara" deixou o fazendeiro bastante irritado, é evidente. E quando eu voltei lá em 2009, pelo [programa da TV Globo] Profissão Repórter, eu encontrei com esse fazendeiro. O filho [dele] queria bater em mim. Eles moram em Campinas, o [festival de documentário] “É tudo verdade” passou em Campinas, eles viram “Corumbiara”, eles falaram 'vamo ver'. E aí quando eu me identifiquei, 'o senhor não lembra de mim...', 'ah, você é o filho da puta'...

Pergunta: Noel Nutels, o indigenista, dizia assim: o problema não é ver na televisão ou no cinema, o problema é ter índio na civilização. Partindo do Noel, eu creio que há uma linha muito tênue nesse sentido. Até que ponto de influência da nossa... se a gente pode partir, por exemplo, pra uma assistência médica, uma assistência do governo... Assim, de que forma você vê essa afirmação do Noel?

VC: 'O problema não é índio na televisão...?'. Bom, o problema é o confronto das civilizações na história da humanidade, né. O Juruna dizia isso, também. À sua maneira. Não existe o problema do índio, existe o problema do branco. Não sei se você sabe quem é o Mário Juruna. É um xavante que ficou famoso, é o único deputado federal que o Brasil...

Pergunta: O que aconteceu com o Juruna?

VC: Ele morreu. Morreu triste, abandonado e muito doente. Ele entrou na lógica da política nacional, pegou uma grana do Maluf e foi desmoralizado. Mas é um pouco o índio que inventou essa... que abrasileirou o famoso gravador do Juruna. Ele ia pros embates com os funcionários da Funai, do Ministério, e gravava. Depois levava pra imprensa e dizia 'olha, ele prometeu isso...' e ficou conhecido, aí que ele ficou famoso, através desse gravador, gravador Juruna. Acabou se elegendo deputado federal pelo PDT. Fazia um pouco parte do projeto da cultura do Darcy Ribeiro e do Brizola. Enfim, todos aqueles deputados que foram eleitos no Rio de Janeiro pelo PDT.

Pergunta: Não sou cineasta, não sou da área de arte, sou biólogo. Mas tenho uma veia de antropólogo. Você falou do Sidnei, né?! Mas eu fiquei meio decepcionado quando o vi entrevistado no [programa da TV Cultura] “Roda Viva” porque achei ele tão pouco comunicativo, ele se expressa tão pobremente. A bandeira dele a princípio seria do lado meio utópico. Mas você disse que ele cedeu a pressões e passou a defender esse contato. Como foi esse momento, você acha que isso é uma fraqueza, que o antropólogo incorre sob pressão ou ele virou a casaca, como se pode definir?

VC: Não, na concepção dele do que era bom pro outro [ele pensava] 'não, tudo bem, no caso de um grupo grande'. Bom, mas um só filha da puta vai ficar me criando problema. E nesse caso ele cometeu um erro no processo lá atrás. E ele sempre ficou, em relação a gente, com a sensação de ter o rabo preso, 'pô, esses filhos da puta vão me denunciar'. Porque o fazendeiro naquele embate  apresenta o relatório do Sidnei pra sustentar a tese dele de que não tinha índio. Então sempre foi uma situação meio incômoda pra ele. Mas todo mundo comete erros. Essa história atravessou.

Pergunta: Uma coisa que você falou no filme, que tá lá na matéria do 'Fantástico', é sobre essa questão do silêncio da imprensa, que é uma coisa que a gente tá o tempo todo conversando a respeito de diversos grupos sociais, não só dos índios, como também dos pobres, por exemplo. E aí me parece que essa situação não mudou muito. Essa visibilidade, essa questão da visibilidade do indígena. Então queria saber de você: qual você acha que tem sido a contribuição do 'Vídeo nas Aldeias' em relação a essa questão da visibilidade. No que o Vídeo nas Aldeias tem transformado um pouco [essa questão]? Porque me parece que ele é um projeto que se coloca justamente nessa perspectiva de militância, chamar atenção pra cultura do indígena e valorizá-la.

VC: É, a gente tá nessa perspectiva e tem atacado em várias áreas. Progressivamente, quer dizer, a produção dos índios vai amadurecendo e vai também marcando presença no cenário audiovisual brasileiro. Teve um programa na TV Cultura, no horário nobre, apresentado pelo Marcos Palmeira, que durante dois anos e meio, apresentou mais de quarenta filmes do Vídeos Nas Aldeias, e reprisou. Em 2000 eu fiz uma série que chama “Índios no Brasil”, pra TV Escola. Infelizmente, a gente vive de avanços e retrocessos, né. Depois entrou o PSDB na TV Cultura, cortou o programa. Que dava (…) a gente sentia, até lá no Vídeo nas Aldeias, os índios comentavam muito com a gente o grau de visibilidade que a televisão dá, principalmente quando é um programa apresentado por um global e num horário nobre, era seis horas da tarde num domingo. Um índio entra no táxi 'pô, você é índio, eu vejo o programa'. O vizinho, o vizinho da aldeia... E começa, descobre, de repente, o vizinho: 'pô, vocês são aqueles, nunca percebi, nunca tive essa intimidade'. Uma outra área importante, que a gente tá um pouco engatinhando nisso, é aquele decreto 2008, que muito devagar tá começando a ser implantado, que é o ensino da temática das culturas afrodescendentes e das culturas indígenas de uma maneira transversal no ensino público brasileiro, tanto fundamental como médio. Então em 2010, a gente ofereceu 60.000 filmes pra rede de escolas, escreveu um guia do professor, pra ensino médio, eram kits de 20 filmes, a gente escreveu pra 3 mil escolas. Mas a gente ofereceu durante um mês esse material, tínhamos 3 mil kits, recebemos 6 mil pedidos, suspendeu a oferta em um mês e já fazem três anos, até hoje não se repetem pedidos. Mas é fundamental essa decisão, ousada porém quase irresponsável, que depende de um grande investimento se tornar uma coisa legal e pra não sair um tiro pela culatra, a gente ficar reproduzindo clichês e preconceitos em larga escala junto aos estudantes, já que os professores não foram formados, informados, né, sobre o assunto, assim como os jornalistas não tem preparo pra tratar do tema. E agora a gente tá executando um projeto da UNESCO, fazendo uma compilação de filmes pra criança, a gente tá chegando lá na raiz, como se entendesse que, quanto mais cedo as crianças puderem ter um contato com essa diversidade, tanto mais chance a gente vai ter de criar novas gerações mais curiosas, menos intolerantes. Porque essa questão do índio é uma coisa que não se sabe exatamente como... Você pega uma criança de três anos, já tem um negócio com os índios, um medo, sabe como é que é?! Então a gente transmite isso, ene momentos, de repente aflora na criança. Então a gente tá atuando nessas várias áreas e curtindo esse negócio das crianças. A gente tem vários títulos que são sucessos, que é a vídeo-carta das crianças [Das crianças Ikpeng para o mundo], que são sucessos mundiais... Enfim, o cinema como... principalmente um cinema que pode trazer a realidade indígena de uma maneira extremamente intimista, honesta, no sentido de não ser uma imagem maniqueísta, de trazer toda [complexidade], cada vez mais... O mundo indígena também é cheio de contradições, não é o bom selvagem que pintaram ou que a gente imagina. Enfim, são seres humanos como a gente. [O objetivo é] trazer uma empatia pra essa realidade.

Pergunta: Você fala no começo do filme, o Vídeo nas Aldeias começa com a proposta de você filmar os índios e depois ele faz um movimento que é de ensinar os índios a filmar e eles próprios constituírem imagens sobre si mesmos. Na sua opinião, o que muda do retrato que você faz dos índios e do retrato que os próprios índios fazem de sua cultura?

VC: Acho que muda tudo. Pra quem, como documentarista, tinha o desafio de retratar a realidade indígena, na verdade, eu começo a fazer documentário no sentido de retratar o processo, ou o vídeo-processo, porque tudo é instrumento. Eu precisava convencer fundações, doadores, patrocinadores – na época nem tinha esse negócio de patrocinador – da importância desse processo. Então toda a série de documentário que fiz na primeira leva são filmes que retratam como cada povo reage, as dinâmicas que isso gera, as reflexões que isso gera.

Pergunta: Nessa primeira leva, como em “Corumbiara”, você narra os filmes? Como era sua ideia do fazer cinema?

VC: Ah, os dois primeiros não era eu narrando, era o famoso Voz Off (sic) [voz exterior à cena que comenta os acontecimentos], né. No terceiro, eu já começo uma parceria com alguém que falava muito bem tupi e aí já saí dessa, é dar voz mesmo [aos índios]. Mas você precisa ter ferramentas pra (…) são 180 línguas diferentes faladas no Brasil, eu gaguejo três ou quatro, então você tem que superar esse negócio da língua. Ou você tem alguém que fala... E hoje ficou cada vez mais fácil porque as novas gerações falam português e são capazes de estar traduzindo as coisas pra gente, entender inclusive o que tá sendo dito, o que tá sendo filmado. E aí, continuando, também são filmes sobre vídeos-processos, são ideias que você materializa em filmes. O cinema que a gente começou a experimentar com os índios é um cinema mais intuitivo, é o cinema possível ali no momento a alguém que tá pegando a câmera pela primeira vez. Então é mais um cinema de observação, que vai descrever o cotidiano. Mas ali, deles com eles, portanto sem barreira de língua e com toda a intimidade – no geral são parentes, tio, os personagens – e isso revela um mundo ao qual eu jamais teria acesso, que eu jamais poderia documentar da forma que eles podem documentar, então a diferença é um outro olhar (…) muito mais rico, muito mais interessante daquilo que eu seria capaz de produzir, né. E aí nesse processo às vezes a pessoa diz 'poxa, você não tá mais fazendo filme, você não se sente frustrado?' Não, eu me sinto muito mais realizado em [ajudar a] fazer alguma coisa que só eles poderiam fazer mas depende de eles terem uma oportunidade. E nesse processo justamente o que é fantástico é descobrir que em qualquer lugar tem um talento pra ser revelado, pra ter a oportunidade, pra ser revelado. Como é um processo de formação continuada, todos os grupos com os quais a gente trabalha, a gente continua trabalhando, há um processo de maturação. Eu diria que o cineasta vai sendo formado e começa ali, num segundo momento, terceiro momento, a formatar ideias, projetos, temas. Sai daquele filme do cotidiano, da festa ou do que seja, enfim, mais calcado num estilo cinema direto e aí vão surgindo filmes mais complexos. Agora, tem filmes produzidos de uma primeira oficina, de um mês, dois meses com a montagem, [que] são absolutamente maravilhosos. Então, do zero você pode, de repente, sair com um produto surpreendente. E foi isso que aconteceu. Toda a primeira leva, filmes de oficina, que são a vídeo-carta, que é... [São] maravilhosos. É isso.

Pergunta: Você consegue identificar marcas que são parecidas, uma linha que que tenha uma identidade deles? como você pode identificar uma identidade da imagem do cinema argentino, cinema brasileiro?

VC: Eu acho que os filmes do Vídeo nas Aldeias têm uma marca, porque é muito auto-referenciado. Eles querem ver filmes de outros povos e, às vezes, eles começam a citar os filmes que eles já viram e tal. Então tem uma retroalimentação de estilo, de recurso de linguagem. Agora eles são muito diferentes entre eles, são povos e culturas muito diferenciadas. Interesses com mundos simbólicos completamente diversos, com essa noção de espaço privado e espaço público muito diferenciada. O que dá uma marca por povos, vamos dizer. Tem povos que são muito exibidos, que as coisas, enfim, que se passam muito no coletivo, e aí é isso que é legal, que é bonito, isso que se deve filmar (...) quando você quer entrar na intimidade, 'isso aí já não é bom...'. O xamanismo, pra alguns povos é um tema que pode ser filmado, pra outros já é uma área de conhecimento reservado. Então é um mundo de temas e de maneiras de abordar muito diferenciado, mas o estilo cinema direto, quer dizer, é uma coisa que é comum, é a escola um pouco que a gente [passa] (...) Acho que cada escola tende a assumir (…) e foi o método que a gente foi maturando e que foi também bastante (…) que nasce de inspiração de uma outra escola de cinema que foi fundada pelo Jean Rouch em Paris, que são os Ateliers Varan, né. Então tem essa linha.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Perguntas a Vladimir Seixas sobre os documentários Hiato e Atrás da Porta, por Cesar Kiraly


Posted in Nº 3 (2011/2) by Revista Estudos Políticos on novembro 1st, 2011


1- Antes de tudo, gostaria que comentasse a sensação, presente no seu primeiro filme, Hiato, de que as pessoas estão sempre muito próximas de entidades muito abstratas, tais como direitos, quão mais o aspecto duro da realidade sobre elas se impõe. Digo a dureza no sentido da fragilidade. Porque no que concerne aos guardas e autoridades, quão mais a dureza lhes confere poder, menos as entidades abstratas se manifestam. Como o documentarista de cenas urbanas conflituosas vive esse paradoxo?


As regiões onde vivem as pessoas que são mostradas no Hiato estão arrasadas até hoje, mesmo que a conjuntura política local seja outra. De fato, elementos como cidadania, direitos humanos, estado de bem estar social e outros, se mostram distante daquela realidade cotidiana e os moradores de lá sabem muito bem disso. A ida ao shopping fazia parte dos esforços de uma semana de ações por parte dos movimentos sociais do Rio de Janeiro referente aos sete anos da chacina de Vigário Geral onde foram assassinadas mais de vinte pessoas. Esse episódio do shopping foi o único que tencionou essa discussão em um nível maior de abstração. Isso se passou no ano 2000 e vi somente pela televisão. Na época me lembro de ter entrado ao vivo no jornal local uma pauta que esperava uma onda de saques e ‘arrastões’. Depois de sete anos, quando precisei fazer um exercício para a escola de cinema Darcy Ribeiro, deciditrabalhar essa história. Já tinha conhecido integrantes do episódio que estudavam na Universidade comigo, lido artigos que abordavam o assunto, assistido palestras que lembravam tudo etc. Pode inicialmente parecer um paradoxo, pessoas com demandas tão concretas realizarem uma intervenção desse tipo, mas acontece que isso foi somente o que ficou; justamente por esse diferencial. Na época houve manifestação no Centro da cidade, recolhimento de abaixo-assinado, comissão entregando documentos ao governador, discurso em carro de som na porta da Alerj, distribuição de vários informativos… Entretanto, a ida ao maior shopping de classe média/alta na zona sul com mais de 300 pessoas muito pobres em vários ônibus e o anúncio à grande imprensa instaurava um gesto perturbador que surpreendeu muita gente.


2- Primeiro você filmou o Hiato e depois o Atrás da Porta. Mas, para mim, depois de assistir ao Atrás da Porta foi que os sentidos do Hiato se abriram com mais consistência. No Hiato as portas se abrem automaticamente, no Atrás da Porta elas precisam ser arrombadas. No primeiro a repressão se deve em muito ao olhar desgostoso, no segundo pela obrigação dos militares uniformizados, ou outros agentes do poder público. No primeiro a pobreza busca a luz, no segundo se esconde dela. No primeiro há o espetáculo da própria condição, no segundo certo envergonhamento. Até a voz que no segundo filme pede “Filma Tudo”, busca se esconder. Como avalia essas distinções?


Entre os dois trabalhos houve mais quatro curtas. Outras formas foram experimentadas e talvez venha daí a referência de maior consistência aberta aos sentidos. Fico feliz que relacione os dois, pois o Atrás da Porta veio mesmo em decorrência do Hiato. Os próprios sem-teto me chamaram para registrar as novas ocupações e despejos devido à circulação e o grau de debate que o curta gerou. E eles foram muito pouco exibidos em conjunto. Também penso neles como complementares. Essa diferença que você identifica também vem da diferença dos processos. No Hiato fui, anos depois, conversar com os manifestantes e nos utilizamos muito de imagens de arquivo da grande imprensa como também de arquivos dos próprios manifestantes. Na ocasião fui com a Helen Ferreira, que tinha registrado em VHS toda a movimentação no Shopping na época. Aquilo tudo era distante. Já no Atrás da Porta, eu e Chapolim (fotógrafo morador de uma ocupação que também aparece no vídeo) estávamos registrando todo o processo e a ação da polícia. Chegamos ao ponto de que em um despejo, quando toda a grande imprensa já tinha ido embora, de receber ameaça de prisão se continuássemos filmando. Quando no último despejo o policial federal diz que serei o último a sair e que eles vão ficar lá dentro só comigo eu não consegui nem apontar a câmera diretamente para seu rosto. Em ambos os contextos houve repressão, imagina um shopping enorme parado. Quantos empresários não exigiram uma punição exemplar, posto que o shopping parou? E se a moda pega? E de fato tivemos caso de abuso e agressão posterior, aos militantes. Mas esse risco não havia diretamente na feitura do curta, diferentemente do segundo caso. Com efeito, os vídeos realmente trabalham a vergonha de maneira diferenciada. Com relação a vergonha no Hiato, vejo o ato do shopping como a potencialização da própria condição no sentido de combate pelos signos da própria pobreza. Isso que te envergonha, nossos signos de pobreza, nos fortalece. Existe uma violência gestual nessa primeira vergonha. Menos espetáculo que ato performático. Com relação ao Atrás da Porta, a vergonha se apresenta em um sentido mais complexo. Me lembro de como propõe duramente Primo Levi em relação aos campos de concentração nazistas; vergonha de ter vivido aquilo e não conseguir impedir. Vergonha de não superar uma lógica que mantém centenas de prédios fechados na região central e expulsa pessoas para onde não há qualquer oportunidade digna de subsistência. Vergonha de ser homem.


3- Poderíamos dizer que a estética da sobrevivência é superior a do shopping center?


Em Campo Belo, Nova Iguaçu, onde vive grande parte das pessoas que participaram do ato no shopping, de 2000 pra cá tivemos a atuação incisiva de milícias, grupos de extermínio, narcotraficantes, policiais e com isso muitas execuções. Na época, cada vez que chegávamos mais perto de lá e pedíamos explicação de como chegar lá, éramos perguntados o que íamos fazer em um local como aquele. Isso já bem longe do centro do Rio. E a estratégia foi exibir imagens de arquivo e depois realizar a entrevista. Os entrevistados iam vendo as imagens e enumerando alguns que já haviam sido mortos. Além de pessoas executadas, muitas mortes por doença… O que quero dizer com isso é que cada uma dessas estéticas de luta só pode valer mais que a outra se forem artificialmente separadas, posto que se articulam em relação de complementariedade. A ida ao shopping e a discussão da segregação disfarçada em nossa cidade recobre seu lado de sobrevivência e vice-versa. Acho que meu primeiro vídeo tenha sido excessivamente expositivo e pra muitos isso tem um menor valor estético no panorama geral do audiovisual. Talvez pela forma como a televisão se utilizou, e ainda utiliza muito, dessa metodologia. A recorrência dessa forma de documentário pela mídia realmente não acrescentou muito no enriquecimento do campo das narrativas audiovisuais. Muito pelo contrário, vemos com isso uma proliferação de clichês.


Durante o curso de cinema, realizei paralelamente um estudo que recuperava a divisão feita por um filósofo de um cinema ancorado na dimensão do homem como estímulo-resposta e outra baseada na ruptura desse par. A intenção era problematizar os automatismos contidos em cada campo. A diferenciação realizada por Gilles Deleuze entre imagem-movimento e imagem-tempo se tornou tão empregada que gera alguns usos acomodados. Grosso modo, o mundo da primeira imagem é ligado ao cinema narrativo que se tornou clássico; já o da segunda seria remetido ao cinema moderno que muitas vezes se vale de uma disnarratividade. O caso é que atualmente o clichê se instala em ambas as tendências, mas vemos um esforço concentrado de denúncia estritamente ao primeiro tipo de imagem. Como se os críticos, curadores, pesquisadores e até os próprios realizadores tomassem um partido; somente de um lado tudo é válido esteticamente. Veja o exemplo da reedição do Cineastas e Imagens do Povo de Jean Claude Bernardet. Ele acrescentou um capítulo mostrando como a ampla utilização de entrevistas nos documentários cada vez mais engessava a criação no cinema. Em dois anos a hegemonia dos filmes documentários nos festivais brasileiros era de documentários que não se valiam de entrevistas. O próprio Deleuze perto da conclusão desses 2 trabalhos acerca do cinema chega a afirmar que não se pode dizer que uma imagem valha mais que a outra. Que as imagens modernas não possuem valor algum se não estiverem à serviço de uma vontade de arte poderosa. Decidi realizar pela escola de cinema um curta filiado a cada uma das imagens. O Hiato pode ser remetido à imagem-movimento e o curta, pouquíssimo exibido, Ruído Negro à imagem-tempo. Ambas investidas foram experimentais em minha condição de aluno. Lembro-me de ter mostrado um corte preliminar a um professor que ficou incomodadíssimo com o rumo da montagem do Hiato. Para agredir o filme disse que o mesmo era um Globo repórter. Chegou ao cúmulo de intervir quando o curta foi selecionado para o festival de Havana no intuito de que o filme não fosse enviado pela escola para o festival. Acho que esse histórico do Hiato ajuda acrescenta nos questionamentos que levantou em relação as distinções estéticas.


4- Voltando ao tema da primeira questão, mas no contexto do segundo filme, o vocabulário das pessoas é muito mais conjuntural, mais circunscrito, e muito menos abstrato, e o sofrimento ao deixar as ocupações parece ser brutal. Há menos espaço para o conceito e se abrem demandas de vitalidade e confronto? A que atribui?


Ao momento decisivo que a cidade do Rio de Janeiro vive em relação aos megaeventos e os confrontos que com isso se anunciaram. Houve um acúmulo de análises conjunturais tanto no nível local quanto no global por parte de vários moradores de ocupações do centro da cidade. Chegou o momento em que ficou claro qual seria o modelo de intervenção urbanística que viveremos. E como a condição deles dialoga com o chamado capitalismo avançado. Os moradores de ocupações do Centro estão no olho do furacão imobiliário. Isso forçou pensar e denunciar o processo político que se encontram. Arrisco a dizer que os jogos Pan-americanos em 2007 foram decisivos nesse acúmulo. O aumento das ações policiais violentas nas favelas, as grandes obras que não visavam a melhora da qualidade de vida das pessoas, o acirramento da especulação imobiliária, aumento absurdo do custo de vida dos trabalhadores, inúmeros despejos de quem está no caminho do tal crescimento etc. Acho que o que surpreende no vídeo é a qualidade da fala das pessoas que estão fora da academia. São pessoas bem pobres e muito articuladas. Tentamos também com o vídeo oferecer a oportunidade de um encontro com a subjetividade daquelas pessoas. Mostrar, mesmo que minimamente, um cotidiano. Com o maquinismo cinematográfico funcionando, compartilham-se as vitórias provisórias como também toda a violência posterior. Fico muito feliz com os usos que o filme já serviu. Ele é utilizado constantemente em manifestações políticas, em atividades de greve, em núcleos de educação popular etc. Claro que se procurar problemas, ele certamente possui, entretanto, diferentemente do Hiato, que teve uma penetração mais rápida, o Atrás da Porta está abrindo seus caminhos aos poucos e, talvez, mais firme como instrumento de confronto ao estado de coisas. De fato, abrem-se as demandas da vitalidade e o conceito vem ao seu lado. As análises das tendências genocidas contidas nas políticas de terra promovidas pelo Estado, a serviço de uma classe dominante determinada pelo capital, que os moradores desenvolvem, surpreendem pelo nível de amplitude e alcance; e pela clareza nas estratégias e propostas. O pensamento destes moradores vai muito além da questão da moradia e a disposição de enfrentamento vem certamente desta consciência.


5- Como explica o cuidado com o habitat ocupado, apesar de toda transitoriedade? Ou será que é o oposto, a obrigação de cuidado com o transitório? Além disso, são nítidos os fragmentos de que uma ocupação prévia foi mal sucedida, mas a esperança das pessoas parece genuína. Como explicar?


Isso é realmente estranhíssimo. Já me relataram que é um fenômeno recorrente em ocupações que são despejadas em poucos dias. Aposto que seja pela intensidade do processo e pela imensa vontade de conquistar um espaço.


Colocar-se ao lado da família e se lançar numa luta tão desigual… é preciso territorializar rapidamente de alguma forma e isso acontece no excessivo cuidado ao recente espaço em disputa. O ato de “criar novos espaços de moradia” dos sem-teto se mostra um ato vital. Todos limpam, arrumam, transformam muito rápido, talvez, para ter força de continuar o confronto. Mesmo que nos pareça óbvio a transição e despejo seja o mais provável. Precisamos também marcar que várias ocupações seguem a luta e resistem no centro do Rio. Ocupações que se fortalecem tanto politicamente quanto juridicamente. Como é o caso da Manuel Congo, Quilombo das Guerreiras e Chiquinha Gonzaga.


6- Quando dá a câmera a uma das ocupantes, uma nova intimidade é criada. Poderia falar um pouco disso? Da mesma forma, há um momento em que mostra as imagens para elas, e de alguma forma se alegram. Como é essa tensão existente na necessidade de autonarrativa como sobrevivência?


Vários filmes já se aproveitaram desse procedimento, O Prisioneiro da Grade de Ferro, as realizações do projeto Vídeo nas Aldeias etc. No caso do Atrás da Porta, tudo se deu menos por um programa que uma atenção aos acasos. Já tinha assistido, sim, bons filmes onde os próprios protagonistas se registravam, mas não tinha qualquer intenção prévia nesse sentido. Até que a Sílvia segurou a câmera para que pudesse almoçar… e tudo aconteceu. Ela tinha gravado muito mais coisa, muito o filho dela e tive que cortar. Mas toda a montagem do filme foi um trabalho de desapego, pois gravamos cerca de 50 horas no total e ficamos no final com uma hora e meia somente. Certamente uma nova intimidade aparece ali. Assisti muitas vezes o trecho em que ela gravou e percebi como a imagem fica com uma leveza própria pelo jeito que ela conduz a câmera e aborda as pessoas. Ela em alguns minutos registrou e se aproximou das pessoas de tal maneira que quem assiste não deixa de se alegrar com aquelas imagens. De se sentir parte daquele coletivo. Acho que grande parte da indignação de quem assiste ao vídeo vem da proximidade que essas imagens proporcionam. Depois disso as imagens ficam um pouco mais dolorosas. Com relação a mostrar as imagens posteriormente aos moradores da última ocupação, foi uma ideia que tive já durante a montagem do filme. Me recordo de Cabra Marcado para Morrer e Boca de Lixo do grande mestre Eduardo Coutinho, de quando leva seus arquivos para gerar algumas fissuras nas pessoas que ele reencontra. Então preparei um pequeno corte de imagens dentro da ocupação seguido da série de agressões que as pessoas que estavam fora do prédio sofreram. Levei tudo em um ipod e mostrei antes da conversa. Fiz isso com os moradores e com os defensores públicos. Acho que isso pode ter gerado uma intensidade maior nas falas. Aproveitei e gravei eles assistindo… o que acabou entrando no filme. Novamente, não existe nenhuma novidade nessa tática, mas me alegro de ter percebido que isso foi necessário a realização desse longa. Se permite uma digressão, não vejo o Atrás da Porta um filme pretensioso que busca desesperadamente o novo, o autoral, o purismo do autêntico; vejo como um filme que encontrou e resolveu suas próprias necessidades com os recursos que dispunha, que soube retribuir o convite dos próprios moradores, como um filme pode somar aos seus esforços de luta. Acho que muitas exibições desses 2 filmes seguiram no esforço de unificação das lutas dos sem-teto em um ponto comum no âmbito das diferentes organizações que existem no Rio de Janeiro. Vejo grupos que debatem depois do filme como ampliar as lutas pela melhora das condições de vida de uma classe que não interessa muito para o crescimento, que se planeja para os próximos anos sob a ótica do capital. Tanto nesse filme quanto no Hiato a forma redonda da narrativa é um modo de retribuição. Nesses dois casos escapar de um filme puramente formalista foi uma escolha necessária. Debruço-me bastante sobre a questão da forma cinematográfica e as minhas poucas investidas nessa arte me mostraram a importância de tentar entender cada filme e a vida daqueles que estão no campo e no extracampo das lentes. Uma vez ouvi o montador Eduardo Escorel falar que sempre dá um filme. Essa afirmação, vindo de uma pessoa que se dedicou muito anos a montar filmes, sempre me soou enigmática. Penso que ela se dirige a inúmeras questões formais, que ela tem o intuito apontar uma saída possível aos impasses das questões últimas, as mais essenciais e as que discutem as funções teleológicas da arte cinematográfica. Não saberia aqui nem aprofundar nem esgotar essa afirmação, mas ela ultrapassa a questão de toda quantidade de filmes que fracassam, não se concretizam na montagem. Filmes que são montados, que se mostram nulos enquanto obra. Filmes, mesmo montados em diferentes versões continuam esvaziados de presença, como também filmes que encontram seu caminho. Filmes que tiveram suas vozes contempladas. Os filmes mais belos. Isso me parece essencial. Sempre dá um filme?


7- Como é se deixar trancar? Quanto tempo leva a última ocupação?


Infelizmente a ocupação durou apenas cinco dias. Desses, dormi dois dias lá. Tirando o último dia, nós podíamos sair e entrar. Havia uma barricada reforçada que seguravam a porta e dava certo trabalho na circulação. Diria que a experiência de estarmos trancado, na hora da ação policial, foi assustadora pela possibilidade de ficarmos fora do campo de visão das pessoas e dos grandes veículos de comunicação que estavam todos lá. Não sei se foi porque aquela região do Centro toda parou com aquela intervenção, não sei se foi porque a situação foi crescendo de proporção, se foi porque não conseguiram arrombar a porta, não sei exatamente o porquê, mas os policiais no final do processo estavam alterados e querendo pegar alguém para punir como exemplo. Nosso maior medo era ficarmos sozinhos com o Batalhão de Choque e a Polícia Federal lá dentro. Apesar de isso estar mudando, não se agride deliberadamente ou se executa uma pessoa normalmente na frente das câmeras. Na internet encontram-se inúmeros vídeos de ações policiais e de exércitos nos quais os próprios combatentes algozes filmam tudo que fazem, mas no geral ainda é uma forma de coibição a presença da câmera nos momentos que se quer agredir ou matar o outro. Alguns acharam que se devia continuar ali dentro e resistir ao máximo, já que a polícia não estava conseguindo arrombar o aparato de bloqueio da porta, mas só fomos até onde deu. Na hora decisiva se deliberou que era melhor, para resguardar todo o coletivo, abrir a porta e finalmente receber a dolorosa ordem de despejo. É preciso que se diga que passei recentemente na porta do prédio e ele está com um muro de alvenaria no local da porta e ainda não mora ninguém lá. É um prédio estatal, como inúmeros outros do Centro, que aguarda uma destinação que não é moradia popular.


8- Como percebe a fala dos juristas? Para mim de alguma forma, parece que ela não se sustenta.


Creio que essa percepção apareça pelo reforço de duas condições, exteriores ao papel das relações, que eles desenvolvem e que são mostradas no filme. Primeiramente, são os únicos com formação acadêmica que ganham voz no filme. E depois pela saturação atual que os especialistas adquiriram no papel de ratificação de qualquer questão quando lhe solicitam; sobretudo quando os moradores já tinham brilhantemente falado de como eles viam a conjuntura política do processo que os afeta diretamente. Geralmente no jornalismo um especialista chega com um ar de Voz de Deus para corroborar uma noção corrente. Os defensores públicos do núcleo de terras do Rio de Janeiro foram pessoas ativas no processo de defesa dos moradores e estão até hoje lá lutando em um quadro duro e desigual. Fui testemunha de como eles sofreram bastante também com tudo e ainda estão lá; a quantidade de despejos e demolições tende a continuar ampliando a medida que os megaeventos se aproximam e não só no Centro da cidade. É, talvez, preciso reconciliar o intelectual acadêmico com os ouvidos da sociedade. O Brasil possui um corpo docente na área de humanas que é extremamente rico e plural; as disputas das ideias precisam sair e transbordar os muros das universidades. É inegável que existe o intelectual-professor que está ali apenas para realizar uma pesquisa onde o meio se transforma em seu fim, ou seja, está na academia para direcionar sua pesquisa meramente para alastrar-se nos meandros burocráticos da instituição e aumentar seus ganhos pessoais. Muitos outros apenas se apoiam na universidade, mas querem debater e propor pensamentos. Além das ciências sociais, poderia destacar professores da filosofia, geografia, história, serviço social, psicologia, letras, cinema e comunicação que escapam das exigências tristes dos órgãos de fomento institucionais e pretendem pensar e criar. É preciso encontrar um canal, pois isso interessa muito as pessoas. No entanto, o que vemos é a formação de guetos que mal dialogam entre si. É necessário substituir as querelas de poder interno na academia pela disputa de alcance das teses. E isso precisa partir dos próprios professores. Se formos de fato todos intelectuais, posto que podemos pensar, por que aqueles que fizeram disso sua profissão precisam se isolar dos que tem outra atividade profissional? Queremos ouvi-los, conversar e algumas vezes argui-los… sem hierarquias. E no cinema acho que isso também deve se colocar assim. Fugir desse Hiii! Lá vem o intelectual. Inversamente, os filmes brasileiros mais acadêmicos são aqueles que negam mais veementemente a presença direta dos intelectuais. Não sei se isso tudo isso se iniciou com a assimilação das críticas às instituições que vários intelectuais europeus realizaram a partir década de 1960, ou com a crescente especialização que o doutor deve seguir atualmente, mas o caso é que o intelectual acadêmico se afastou muito das pessoas no debate de ideias e só publica e dialoga com seus pares. E desde que seu programa de pós-graduação tenha uma boa nota nos órgãos de fomento, suas publicações tenham uma boa qualificação, tudo vai bem e a meta foi cumprida. Aí transformam o meio acadêmico em uma finalidade.


9- Como percebe as ameaças que recebeu? Parece que antes você não podia entrar, e depois não podia sair. A identidade de documentarista lhe foi uma desvantagem? 


Acho que a polícia está cada vez mais atenta com relação às diferentes coberturas instauradas nos fatos políticos que são obrigados a enfrentar cotidianamente. Não é de hoje que também realizam suas filmagens na cara dos militantes com o intuito de intimidação. Outro dia acompanhei uma novidade em uma manifestação em São Paulo contra o aumento das passagens dos ônibus. Tinha o contingente que normalmente se destaca para esse tipo de ato, choque, soldados, P2, oficiais etc. Mas tinha um pequeno grupo de policiais resguardando outros dois: um filmava e outro carregava uma grande mochila com uma antena… Eles estavam transmitindo em tempo real toda a movimentação. Provavelmente estavam recebendo ordens de acordo com o que transmitiam. Nesse dia houve uma série de agressões e os novos-documentaristas a serviço do estado estavam bem no meio delas… Sempre filmando. Quando eles partem diretamente para agressão dos militantes, que também sempre filmam, e tentam quebrar as câmeras, ou eles já cometeram excesso ou não há a presença da grande imprensa no momento. Não há mais manifestações políticas sem a presença de câmeras. Acho que naquele caso eles não tinham a dimensão que era um documentário que já vinha filmando há alguns meses, mas que era um registro que destinava apenas a proteção das pessoas envolvidas e posterior denúncia. Um oficial de justiça chegou a me ameaçar que me daria voz de prisão, pois não queria vídeo com suas imagens na internet. O tamanho da câmera é um importante diferencial que orienta a forma com que a polícia se relaciona com cada tipo de mídia. Falava pro Chapolim que às vezes era necessário aquele trambolho da grande imprensa para abrir portas e garantir nossa segurança… Ele sempre ria. Mas o que é estranho é essa mistura de poderes e instituições. Os policiais confiam de tal maneira na grande imprensa que é comum no Rio de Janeiro, incursões policiais em que os jornalistas vão junto com o destacamento mais avançado, mesmo na linha de tiro. Vemos jornalistas com colete à prova de balas, com roupas da mesma cor que os policiais; sem a possibilidade de distinção, a certa distância, se estão portando um fuzil ou uma câmera. Simultaneamente, vemos um número menor das denúncias das execuções como auto de resistência. Não precisa nem mesmo ter acontecido um acordo às claras. Fica assim: me dá oportunidade de imagens espetaculares do confronto, à moda das grandes produções, com base em tiroteio em favela, que reproduzo no jornalismo o que se viu no cinema. É o famoso ‘juntos e misturados’. Temos novos integrantes nas Tropas de Elite com propósitos em comum. É também comum morrer um jornalista na linha de frente… que sempre tentam transformar em herói. Penso que as filmagens minoritárias possuem a desvantagem, em relação à segurança, de estar claramente no lado oposto. Como ainda não se criminalizou totalmente os movimentos sociais há ainda a possibilidade de chamar os jornalistas e utilizarmos a presença deles como salvo-conduto das manifestações. Isso pode já estar em transição dado o grau de envolvimento dos grupos midiáticos nos projetos e nos financiamentos estatais. Se isso se efetivar totalmente teremos, com certeza, dias muitos mais duros.


Disponível em:

http://revistaestudospoliticos.com/perguntas-a-vladimir-seixas-sobre-os-documentarios-hiato-e-atras-da-porta-por-cesar-kiraly/

Atrás da porta: http://www.youtube.com/watch?v=NDQuRhsr8HI

Hiato: http://www.portacurtas.org.br/filme/default.aspx?name=hiato

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Mostra "Barreiras Invisíveis" - Monsenhor

O Cine Coque exibe hoje, às 16h, na Escola Monsenhor Barreto (escola pública do Coque), a mostra de curtas "Barreiras Invisíveis". A exibição pretende refletir com os alunos do Coque - uma das comunidades mais estigmatizadas de Recife - sobre a invisibilização de sujeitos na lógica de sociedade em que existir é sinônimo de consumir. Para levantar esse tipo de discussão serão exibidos dois filmes do cineasta carioca, Vladimir Seixas e dois filmes produzidos pelo Coque Vive:




"Hiato" (http://www.portacurtas.org.br/beta/filme/?name=hiato)

O vídeo retrata, 7 anos depois de ocorrido, uma ocupação do movimento sem teto em um shopping center do Rio de Janeiro. A simples presença dessas pessoas nesse espaço, que a princípio não seria vetado a ninguém, causa incômodo, tanto por parte dos vendedores, que ficam atemorizados, quanto dos frequentadores. O filme é ideal para discutir essas "barreiras invisíveis" que geram abismos em nossa sociedade. Afinal de contas, não é proibido aos pobres frequentarem os shoppings, mas esse lugar é feito para eles? É fazendo os "gran finos" terem que conviver com uma praça de alimentação cheia de pessoas negras comendo sanduíche com mortadela que a manifestação esfrega a realidade na cara de quem não quer vê-la. 

Diretor: Vladimir Seixas
Duração: 20 min
Rio de Janeiro, 2008


"À sombra da marquise" (http://www.portacurtas.org.br/beta/filme/?name=a_sombra_da_marquise)

O filme mostra a disputa entre moradores de rua e donos de apartamentos pelo espaço das calçadas: o que pra uns serve de leito, pros outros deve ser um espaço livre, sem "estorvos". Chega-se ao ponto dos prédios colocarem dispositivos de água que impedem que os moradores de rua permaneçam nesses locais. Há depoimentos de síndicos e vigilantes que falam sem o mínimo pudor de como desejam se livrar dessas pessoas.

Diretor: Vladimir Seixas
Duração: 8 min
Rio de Janeiro, 2010

"Ocupar: Resistir" (https://vimeo.com/42828128)

O filme registra a ocupação dos moradores da comunidade do Bom Jesus na sede da Prefeitura do Recife, após terem sido despejados, de forma violenta e sem aviso prévio, de suas moradias. No ato do desepejo a prefeitura afirmou que eles não teriam direito a nenhum benefício por não terem completado um ano de residência no local. Porém, após a manifestação do grupo, que contou com o apoio de movimentos sociais da cidade, os moradores conseguiram a garantia de auxílio moradia.


Realização: Coque Vive
Duração: 10 min
Recife, 2012


Realizado por dois jovens do Coque, Gutemberg Vieira e Sandokan Xavier e editado por Caio Zatti, o vídeo foi feito para o projeto “Medialogo”, do curso de inglês ABA. Os alunos do ABA produziram um vídeo falando sobre sua visão da periferia, o projeto pedia, então que jovens de coletivos comunitários enviassem vídeos-resposta em relação ao primeiro. O filme mostra a visão que os moradores da comunidade têm sobre a classe média e termina propondo que se construam mais pontes de diálogo entre os diversos atores sociais, como solução para uma visão mais plural das realidades.

Realização: Coque Vive
Duração: 5 min
Recife, 2008

A  Escola Monsenhor Manuel Leonardo de Barros Barreto fica na Rua Arariba. (Próximo à Estação Joana Bezerra)

domingo, 10 de junho de 2012

O nascimento do Sol

A cada manhã, antes que o dia se levantasse, toda tribo ia se reunir junto ao rio, de onde o horizonte se mostrava mais claramente sobre a floresta. Ah Ngang, o ancião, chegava por último. Ele se concentrava longamente, pronunciava algumas fórmulas mágicas pouco audíveis, rostos e mãos se colocavam num longo e penoso diálogo com o horizonte. Ao final do debate, o horizonte cedia e o sol, por vezes abóbora amarela, por vezes grande fruto vermelho, subia por detrás das árvores. Era o nascimento do novo sol, que tinha um dia para viver antes de recair, não se via muito bem como, do outro lado da floresta. Aplausos saudavam sempre a performance de Ah Ngang e a tribo velava-o ternamente.

Como ele se tornava velho, empreendeu a iniciação de um rapaz, Sayub, para que, na ocasião de sua morte, a tribo não ficasse sem sol. Ele lhe ensinou as fórmulas e os gestos, com interdição de se servir delas enquanto ele ainda estivesse vivo.

Mas, quando ele estava mesmo à beira da morte, pediu aos outros que o deixassem só com Sayub, a fim de revelar-lhe o último segredo. "Não diga jamais a ninguém, salvo àquele que te sucederá quando sua hora chegar, mas o sol se levanta sozinho. Não me julgue mal, não é para ganhar uma vida protegida no seio da tribo que eu perpetuei uma mentira que nossos ancestrais transmitiram desde os primeiros tempos. Mas a tribo ama que seja assim, eles são menos tristes assim. A sua vez agora." E ele morreu.

Sayub não disse nada para não afligir o velho homem, mas ele sabia da história. Ele era curioso por natureza e o acaso de um encontro com um branco lhe fez aprender um certo número de coisas sobre o mundo para além das florestas. Não a ponto de desmascarar a mentira de Ah Ngang, de quem ele tinha um pouco de medo, mas o suficiente para se fazer, há tempos, uma promessa.

Esta promessa, ele cumpriu a partir da manhã seguinte. "Habitantes da tribo", disse ele, "nós  amávamos e respeitávamos Ah Ngang, mas ele era o passado. Com ele morreu uma certa ideia poética do mundo, saudamo-la e sigamos corajosamente adiante: nossa tribo não pode ficar eternamente de fora de um progresso que tem tanto a nos oferecer. Aprendam enfim a verdade: o sol se levanta sozinho." Todo mundo o olhou com temor e depois eles contemplaram o horizonte. Sayub não pronunciou nenhuma fórmula, nem se entregou a nenhuma mímica. E o sol não se levantou. Nem este dia. Nem no dia seguinte. Nem nunca mais.

(Chris Marker, 2002, In Nouvelles du Doppelwelt)

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Um lugar ao sol na Monsenhor

A  palavra que definiu a última exibição do Cine Coque na Escola Monsenhor foi: ousadia. Nós que, hesitávamos tanto em levar um longa às escolas, nós que  tanto nos preparamos montando a mostra "Quem você vê" e a desmontamos toda, criando a mostra "Barreiras Invisíveis" - que também não foi possível de ser realizada da maneira como havíamos pensado,  por problemas técnicos - fomos na última segunda-feira ao Coque e exibimos o vídeo "Um lugar ao sol" do cineasta pernambucano, Gabriel Mascaro.

Foi, não só o fato de ser um longa, não só o fato de termos exibido de improviso o que caracterizou a nossa ousadia, mas, principalmente, o tema do filme. Levamos pra gente que mora em casas simples, num lugar que nem saneamento básico tem, um vídeo cuja intenção é apresentar o que pensam pessoas de classe média alta de sua condição de moradores de cobertura.

 É curioso comparar o status que essa condição lhes dá - como o fez Caio - com o estigma que os próprios alunos sofrem. Se para os personagens do filme, o simples fato de escrever no endereço "aptº 501, cobertura" lhes garante um olhar diferente, para os moradores do Coque, escrever "bairro: Coque", também promove um efeito, só que contrário, de fechar portas, de recusar empregos, de associá-los a imagem de marginais.



Foi assim, diante de olhares atentos e outros nem tanto, que a riqueza e futilidade de alguns e outros nem tanto, desfilavam na projeção. A curiosidade que me inquietava - sentada assistindo também pela primeira vez, e me espantando diante da sensibilidade de alguns personagens tão apurada para a estética e tão fria quando se trata de problemas humanos - era de saber o que de fato estavam sentindo aqueles meninos diante daquele filme.

Será que tamanha ostentação poderia feri-los? Será que o alheamento dos personagens às questões sociais  poderia provocar revolta, repulsa, abjeção? Era com isso que eu me preocupava, mas ao mesmo tempo pensava "Mas Maria, eles realmente não pensam isso? A gente (o filme) tá simplesmente mostrando pensamentos que de fato existem". Aí depois eu pensava "Mas, será que provocar repulsa é o que a gente quer?".

Findo o filme, eu pude dimensionar um pouco do que causou a exibição, nos alunos, pelas suas poucas falas: "Ah, aquela mulher era muito metida", "Oxe, a mulher reclama até do barulho das panelas!", "Eu queria ver se ela viesse pra cá pro Coque se ela não ia ficar com medo dos tiros". Umas das alunas disse, surpreendentemente, inclusive, que se admirou porque nem todos eram metidos, mencionou a personagem que fala sobre o egoísmo de nossa sociedade.

Foi  em meio a questionamentos e incitações à reflexão que terminamos a exibição: perguntando se eles tinham mudado sua visão daquela realidade; pedindo pra refletirem sobre o fato de morarem no Coque e verem de longe aqueles prédios; pra pensarem sobre a situação de apatia em relação aos problemas sociais em que vivem essas pessoas; perguntando se eles acham que se aquelas pessoas descessem dos prédios e adentrassem as favelas, mudariam seu pensamento de alguma forma..

 Foi assim, deixando as perguntas no ar que terminamos a ousadia dessa exibição. A última provocação que fizemos foi que eles fizessem cartas-resposta para algum personagem que escolhessem (dinâmica proposta no material pedagógico que veio junto com o filme). Assim partimos, esperando que continuemos a discussão na próxima exibição, quem sabe já com a mostra "Barreiras Invisíveis" pronta?